Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Adolescentes transam, ministra

Contrária às evidências científicas, abstinência vulnerabiliza quem deveria proteger

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No livro “Os Testamentos”, Margaret Atwood faz uma sutil piada, pertinente aqui, sobre a teológica nação do livro: “Gilead tem um problema de longa data, meu leitor: para o reino de Deus na terra, aqui há uma taxa de emigração vergonhosamente alta”.

Começo com a distópica Gilead, onde o controle teológico de natalidade é política de Estado, para separar o joio do trigo.

Ninguém impede igrejas de pregar abstinência para os seus fiéis, como também não deveria ser proibido delas discordar. O que não se pode fazer é impor o mesmo discurso moral a todas e todos os adolescentes do país por meio de uma política pública oficial que pregue abstinência sexual para adolescentes (de 15 a 19 anos) como forma de prevenção de gravidez precoce.

Tampouco se está falando de crianças. Sexo com menores de 14 anos é, por lei, crime de estupro de vulnerável. O Brasil ocupa a vergonhosa quarta posição no ranking de casamento infantil (de menores de 18 anos), o que deve ser enfrentado por políticas que tratem de aspectos legais, culturais e socioeconômicos, conforme estudo “Tirando o Véu” de 2019.

Bolsonaro acertou em sancionar lei em março de 2019, que proibiu o casamento de meninas de 16 anos em caso de gravidez: hoje adolescentes de 16 somente podem se casar com a autorização de ambos os pais.

A retórica religiosa confunde propositalmente esse debate com a prevenção da gravidez precoce para criar polarizações que não existem: ninguém é a favor da sexualização de menores (exceto apresentadores de TV apoiados pela família presidencial).

Damares alega ter base científica para pregar a abstinência de adolescentes. Não tem.

Sem respaldo científico, pregar abstinência significa vulnerabilizar adolescentes, colocando-as em risco de gravidez indesejada, DSTs e violência sexual. Afirmando não ser uma “proposta maluca de sua equipe aloprada”, Damares cita estudo chileno de 2005 com uma amostra ínfima de 1.000 adolescentes em escolas de ensino médio de Santiago.

Ignora a ministra, no entanto, que outros estudos mais abrangentes (e, portanto, mais confiáveis) sobre o Chile dizem o contrário.

Políticas de abstinência no Chile entre 2010 e 2017 em alguns contextos reduziram casos de gravidez precoce, mas “diminuíram o uso de camisinha masculina e promoveram um aumento nos casos de gonorreia e HIV. Casos de violência sexual entre adolescentes também aumentaram”, conclui estudo com uma amostra de 26 mil estudantes publicado em 2019 na Revista Chilena de Obstetrícia e Ginecologia.

Retórica pró-abstinência agora promovida pelo governo federal é enlatado comprado nas prateleiras conservadoras norte-americanas.

Desde a década de 1990, os EUA gastaram US$ 2 bilhões com programas de abstinência sexual. Conforme estudo na American Journal of Public Health em março de 2019, não somente essa cifra bilionária “teve zero efeito nos índices de natalidade entre adolescentes” mas nos estados conservadores a política pró-abstinência teve o efeito oposto: aumentou a gravidez precoce.

A gravidez na adolescência no Brasil está acima da taxa da América Latina e Caribe, apenas abaixo de índices subsaarianos.

Políticas de prevenção de gravidez indesejada e de DSTs e debate sério sobre relacionamentos abusivos, violência e masculinidade tóxica, bem como políticas para empoderamento econômico de adolescentes: é isso que tem se mostrado efetivo, inclusive em estudos brasileiros.

Em Gilead, Margaret Atwood mostra que a opressão sobre mulheres, embora ditada em benefício dos homens, possui aliadas entre as próprias mulheres que a praticam, como se benevolência fizessem. Que Gilead não seja aqui.

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