Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Bolsonaro faz da mentira sua tática política sobre a ditadura

Ao presidente cabe esclarecer suas declarações que violam compromissos internacionais de busca da verdade

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Imagina um dia acordar e não saber onde está seu pai, mãe ou filho. Imagina conviver com o peso dessa ausência por décadas. Imagina não possuir sequer um atestado de óbito. Ou pior: possuir um que não aponte a real razão da morte de seu familiar.

Este é o caso das famílias de 243 desaparecidos durante a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985. Desaparecidos políticos representam metade das vítimas fatais da ditadura segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade de 2014.

Nesta quinta-feira (1), o presidente Jair Bolsonaro modificou quatro dos sete assentos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do governo federal. Modificou é eufemismo. Aparelhou ideologicamente o órgão com correligionários do PSL. O motivo da mudança é tão claro quanto a brutalidade do regime ditatorial.

Na segunda-feira (30), o presidente foi criticado internacionalmente ao insinuar em rede nacional que o estudante Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, fora morto por militantes do grupo Ação Popular.

A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos reconheceu, no entanto, que Fernando “faleceu provavelmente no dia 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro.” São os próprios militares que desmentem o presidente: um documento de 1978, da Aeronáutica, atesta a prisão em 1974 de Fernando Cruz, antes de sua morte.

 

Age corretamente o STF ao interpelar o presidente a esclarecer suas declarações sobre Fernando Cruz. Sob a legislação internacional, crime de desaparecimento perdura até que seja esclarecido. Impedir que o seja é obstruir a Justiça.

O presidente mentiu em outras ocasiões: mentiu sobre Vladmir Herzog em 2018, sobre Rubens Paiva em 2012 e sobre Miriam Leitão no último dia 19. Bolsonaro faz da mentira uma tática política sobre a ditadura. E isto é sem precedentes.

Todos os presidentes democraticamente eleitos buscaram a verdade histórica sobre o que ocorreu na ditadura.

Segundo a pesquisadora Glenda Mezarobba, Collor abriu os arquivos do Dops (Departamento de Ordem Política e Social).

Sarney ratificou a Convenção Contra a Tortura, uma das recomendações do Brasil: Nunca Mais.

FHC estabeleceu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em 1995 e a Comissão de Anistia em 2002.

Lula aprovou, em 2011, e Dilma instaurou, em 2012, a Comissão Nacional da Verdade.

Bolsonaro mente ao partidarizar a busca da verdade sobre a ditadura.

Da mentira fez-se a vingança. Ao dificultar a busca da verdade modificando a composição da comissão que esclarece desaparecimentos durante a ditadura, o presidente recai em uma série de ilegalidades. Viola o princípio constitucional da impessoalidade. Justifica um ato presidencial com base em desafetos pessoais coletados pelo mandatário nos últimos dias por suas declarações descabidas.

Sob Bolsonaro, o Brasil —um dos últimos países latino-americanos a enfrentar seu passado ditatorial —aprofunda seu lugar de isolamento internacional em matéria de Justiça de transição.

Condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos –nos casos Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), em 2010, e Vladmir Herzog, em 2018 – o país possui a obrigação internacional de esclarecer os desaparecimentos ocorridos durante a ditadura, provendo justiça aos familiares.

Caberá ao STF e às cortes internacionais –bem como ao Congresso Nacional– desnudar o real motivo por trás do aparelhamento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e, mais, por trás da recente verborragia presidencial sobre a ditadura.

Ao retirar o manto da mentira histórica com o qual Bolsonaro reveste seu discurso sobre a ditadura, há de se revelar a verdade sobre nosso passado brutal com o qual, enquanto país, ainda não soubemos lidar.

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