Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Thiago Amparo

Eles passarão

Submeter jornalistas e ativistas a risco se tornou política de Estado no Brasil

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Quando me ameaçaram de morte na internet por conta da minha última coluna na Folha, me veio à mente este poema de Mário Quintana. “Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho/Eles passarão/Eu passarinho.” Amo este poema pela simplicidade ambígua que ele encerra; pelo substantivo pássaro que se torna verbo.

Direitos humanos são como os canários que os operários costumavam carregar nos ombros quando desciam para as minas nos EUA. Contam os professores de Harvard e Yale Lani Guinier e Gerald Torres no livro “The Miner’s Canary” que, por terem um sistema respiratório frágil, os pássaros serviam de alerta para quando o ar se tornara tóxico demais no interior das minas. 

Ataques, digitais ou não, a quem busque a verdade e lute por direitos deveriam nos alertar: os ares da nossa democracia em crise se tornaram tóxicos demais. Trezentos e quatro defensores de direitos humanos foram mortos em razão de seu trabalho em 2019, informa relatório da Frontline Defenders em relação a 31 países. 

Sendo que 85% deles já tinham sido ameaçados antes, 40% deles trabalhavam com temas relacionados a direito à terra, povos indígenas e ambiente. No Brasil, 23 defensores e defensoras de direitos humanos foram assassinados em 2019.

Passarinhos em madeira - Eduardo Knapp/Folhapress

Bolsonaro reeditou em julho de 2019 o decreto sobre o programa federal de proteção a defensores e comunicadores. Hoje presente somente em seis estados, e com um orçamento insuficiente e em queda, o programa deveria proteger a integridade de ameaçados, inclusive por meio de ajuda financeira.

Falhas estruturais na rede de proteção federal deixadas por administrações anteriores, reproduzidas no decreto, se tornam hoje fatais no governo que tem a violência como culto. 

Entre as falhas, incluem-se a ausência de participação da sociedade civil em seu Conselho Deliberativo —composto de apenas três representantes dos ministérios de Damares e Moro, e a interlocução nula com políticas que vulnerabilizam os mesmos defensores e jornalistas que o programa busca proteger.

Segundo a Agência Pública, 348 dos 426 casos incluídos no programa federal estão relacionados a conflitos de terra e ambiente. Chega ser sádico instituir um programa contra a violência cuja ilicitude o mesmo governo busca excluir.

O que diferencia os fracassos dos programas de proteção sob governos anteriores da farsa que se tornou o programa atual é que não vivemos em tempos de normalidade democrática. 

Quando nela vivíamos, erguemos mecanismos federais para proteger defensores e jornalistas contra desmandos de governos locais. Incluem-se aqui a federalização de graves violações de direitos humanos instituída em 2004 ou o próprio programa federal de proteção. Hoje, o desmando local toma assento no Palácio da Alvorada, decretando às favas o pacto federativo no qual se baseiam as políticas de direitos humanos.

O que diferencia hoje de outrora é que quem ustramente homenageara sicários com medalhas de honra ascendeu ao posto máximo da República. Quem hoje confia que instituições federais sejam isentas para proteger a quem o mandatário da nação jurou pôr fim? Quem hoje confia que as mortes de defensores serão investigadas com seriedade pelo juiz-ministro, se com balas de revólver seu rosto é esculpido?

Lembro Shakespeare em “O Conto de Inverno”, uma nobre mulher desafia a tirania do rei da Sicília: “Herege é quem lança o fogo, não quem nele queima. Não vos chamo de tirano; porém o modo tirano por que tratais sua esposa mostra certo sabor de tirania, deixando-vos ignóbil, mais do que isso: vergonha para o mundo.” Eles passarão. Nós passarinho.

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