Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Precisamos falar sobre Mercedes Baptista, bailarina que fez história

Deixamos passar a efeméride do nascimento de uma das mais importantes coreógrafas negras do Brasil

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Todos os anos o Brasil tem suas efemérides. Este ano nós devemos falar de algumas delas por esta coluna, algumas bem relevantes no contexto histórico e político do país, outras nem tanto. É possível que mesmo entre as efemérides históricas ou relevantes, esqueçamos umas e outras. É natural dos brasileiros sermos acometidos de amnésia, seja por desleixo, seja por simples esquecimento mesmo.

No ano passado fomos acometidos dessa espécie de "amnésia" a que estou me referindo. É que deixamos passar uma data por demais relevante para a cultura brasileira, no seu aspecto mais sensível —a da dança. E não se trata de qualquer dança ou dançarina, trata-se da memória de uma das mais significativas coreógrafas negras do país, a campista Mercedes Baptista.

Retrato de Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa brasileira
Retrato de Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa brasileira - Acervo UH/Folhapress

Para reduzir um pouco do descaso com a memória de Mercedes Baptista e destacar a passagem do centenário do seu nascimento, ocorrido no ano passado, o professor Paulo Melgaço da Silva Júnior publicou em caprichada edição "Mercedes Baptista, A Dama Negra da Dança", que saiu pelo selo Ciclo Contínuo Editorial. Trata-se de um dedicado trabalho sobre uma das maiores bailarinas negras brasileiras.

O livro, dividido em dez capítulos, fartamente ilustrado, se resume num belo esforço biográfico sobre Mercedes Baptista, abrangendo do dia 28 de março de 1921, data do seu nascimento, na cidade de Campos dos Goitacazes, no Rio de Janeiro, onde teve uma infância pobre e sofrida, filha de Maria Ignácia da Silva, uma costureira da cidade, e de João Baptista Ribeiro, então "um tratador de cavalo de raça", segundo o biógrafo, até sua morte, no Rio de Janeiro, por velhice, em 18 de agosto de 2014.

A trajetória de Mercedes Baptista é tão relevante que chega a ser estranho pensar o quanto ela ainda hoje é ignorada e esquecida. Não só como mulher, mas como artista negra, Mercedes transformou o cenário da dança do país quando levou para os palcos a coreografia afro-brasileira como parte integrante do espetáculo da dança.

Retrato de Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa brasileira, em 1960
Retrato de Mercedes Baptista, bailarina e coreógrafa brasileira, em 1960 - Acervo UH/Folhapress

Para uma mulher que atravessou o século 20 dançando, seu desafio foi muito grande. Os anos que vão de 1940 em diante são os mais emblemáticos e marcantes de sua carreira artística, desde os primeiros passos ao ingresso na clássica escola comandada pela bailarina russa Maria Olenewa.

Esse enfrentamento vai se dar com a sua entrada, por concurso público, no histórico Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Mercedes Baptista vai ser, a partir de 1948, a primeira negra a integrar o Corpo de Baile do Municipal. Vai passar a viver momentos decisivos, não só pela dureza dos ensaios, mas, sobretudo, pelo racismo reinante por parte da direção que não a escala ou se a escala, não a dão destaque.

Como artista negra —mulher jovem, esguia, cabelos crespos à altura da cintura, uma desenvoltura de corpo que impressiona e encanta—, Mercedes se sobressai na apresentação da ópera "Aída", de Verdi, em que vive uma sacerdotisa "que vinha em uma bandeja, com um corpo escultural e cabelos longos até as nádegas", como aponta Paulo Melgaço.

Exatamente nessa época encontra duas pessoas que irão mudar sua vida: o ativista negro político Abdias Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro, e a bailarina americana Katherine Dunham, de passagem pelo Brasil, experiente em danças afro-americanas e mentora de um método que ficou conhecido como "técnica Dunham".

Por meio do apoio de Nascimento, Mercedes seguiu para os Estados Unidos com Katherine. Essa experiência vai ser determinante para a carreira da artista, especialmente para a abertura de sua visão sobre a dança, com base nas práticas americanas e para criar no Brasil os primeiros núcleos da dança negra, que vai da Companhia de Danças Étnicas à criação do Balé Folclórico Mercedes Baptista.

Quem passou por suas aulas teve em mente o quanto era rígida e exigente. Elza Soares, que no início da carreira trabalhou com Mercedes, viajando com ela para o exterior, falava de "métodos autoritários". Uma de suas primeiras alunas, Lurdes da Silva, se refere à "bendita humilhação" que, a cada dia, lhe fazia passar.

Porém, Mercedes deixou suas raízes e cultura como contribuição da dança negra, não só como serviço coreográfico, mas na forma de luta pela igualdade racial e de gênero no país. Foi pioneira.

Toda a sua trajetória está em "Mercedes Baptista, A Dama Negra da Dança", mas também na memória de milhares de brasileiros, que viram a beleza e a performance de Mercedes como artista dos palcos ou sendo homenageada por escolas de samba como a Beija-Flor de Nilópolis ou Acadêmicos do Salgueiro.

Única em seu métier, deixou um legado até hoje perene, pelos valores e ensinamentos. Assim a vemos representada em Bethânia Gomes, a primeira bailarina negra brasileira a chegar ao posto mais alto numa companhia de balé clássico, o de primeira-bailarina, além de ser filha de um dos maiores nomes do ativismo feminino negro brasileiro, a poeta e historiadora Beatriz Nascimento; em Ingrid Silva, hoje a primeira-bailarina do Dance Theatre of Harlem, de Nova York; e, antes de todas elas, em Consuelo Rios —recusada pelo racismo, por ser negra, nos testes como bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, nos idos dos anos 1940.

Trazer à tona a história de Mercedes Baptista é resgatar as lutas de todas essas mulheres negras, de ontem e de hoje. A dança afro-brasileira tem em Mercedes não só a sua patrona, a sua guardiã, mas a sua defensora e seu principal nome. A data do centenário de nascimento —1921-2021— pode ter passado em vão, mesmo seu brilho sendo merecedor, mas seus passos continuarão a inscrever seu nome sobre sapatilhas e bailados.

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