Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

O adeus a Pelé nos faz refletir sobre o mundo sem racismo no futebol

O rei nos deixa com a sensação de que uma era foi embora junto com ele

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Eu tinha nove anos quando Pelé, ou Edson Arantes do Nascimento, em 1970, jogou sua última Copa do Mundo. No meu tempo de menino, numa casa sem aparelho de televisão —que ainda era preto e branco— a nossa Copa, ou a "copa dos moleques", era feita na rua, nas chamadas peladas, em campo "rala coco", ou de terra batida, com short curto e pés no chão.

Na última quinta-feira, o rei do futebol brasileiro e mundial nos deixou após longos 82 verões e primaveras, mas não sem antes ver a última Copa do Mundo de sua existência, a do Qatar, que deu o título à Argentina. Parece que assim quis o seu destino e o do esporte mais festejado de todos os tempos, que o guindou ao posto de majestade.

Pelé em retrato de 1961 - AFP

Imaginar que, no Brasil eivado de racismo e preconceitos, um menino, nascido de uma família preta e pobre, fosse chegar tão longe.

Na minha infância, durante muito tempo, nós éramos todos —moleques pretinhos do subúrbio carioca de Realengo—, chamados de Pelezinho, não por ofensa, antes por elogio, mesmo que a bola não quicasse redonda em nossos pés cinzentos, como aconteceu com o rei desde sua mais tenra idade, na cidade mineira de Três Corações, onde nasceu, em 1940.

Não é fácil ser um ídolo com as cores do Pelé no Brasil. No ano de nascimento do menino Edson —apenas 52 anos após a assinatura da Lei Áurea—, a expectativa de vida de meninos e meninas negros era mínima devido a doenças causadas pela desnutrição e baixa qualidade de vida.

Na época dele, vivia-se a depressão da Segunda Guerra Mundial, que durou até 1945, e quase quebrou a economia mundial. O gênio do futebol nasceu há um ano da guerra e há dois da Copa de 1938, onde o time brasileiro conquistou o terceiro lugar, com destaques para os jogadores Domingos da Guia e Leônidas da Silva —este outro fenômeno, conhecido pelo apelido de Diamante Negro, marca de chocolate ainda hoje.

Na prática, os grandes do futebol nacional sempre foram negros. O primeiro deles, Arthur Friedenreich, de pai alemão e mãe negra, foi nosso ídolo brasileiro, mas sofreria racismo pesado, sendo inclusive proibido de jogar fora do país por Epitácio Pessoa, presidente da República da época. O caso indignou o escritor Lima Barreto, que comentou o episódio numa crônica.

"O Sacro Colégio de Football [espécie de CBF] reuniu-se em sessão secreta para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro —homens de cor, enfim. [...] O conchavo não chegou a um acordo e consultou o papa, no caso, o eminente senhor presidente da República. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano."

Nesta terça-feira, ao contrário do que houve no passado, Pelé recebeu despedida digna de quem fez muito pelo seu país e pelo futebol do mundo, inclusive do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Quando moleques, sem qualquer noção sobre o que era o racismo, todos nós queríamos ser o Pelé das nossas peladas, sobretudo a partir daquela Copa de 1970, onde o Brasil sagrou-se tricampeão, e Pelé um dos maiores jogadores do esporte mundial.

Homem versátil, Pelé não se satisfez só com o futebol. Foi também artista —compositor e ator. Cantou com Roberto Carlos e Jair Rodrigues. Na televisão e no cinema, atuou ao lado de estrelas nacionais e internacionais, entre os quais Renato Aragão e Sylvester Stallone.

O rei nos deixa com a sensação de que uma era foi embora junto com ele —vamos precisar agora de uma outra contagem do relógio do tempo, uma espécie de antes e depois de Pelé.

Dois livros que conheço podem trazer boas histórias e servir de referências para se entender um pouco mais desse grande gênio da bola. O primeiro é "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, e o outro é a biografia "Pelé: Estrela Negra em Campos Verdes", da jornalista Angélica Basthi.

Ambos detalham em texto e imagens a glória de um dos maiores gênios do futebol mundial que, apesar de todas as suas contradições —natural para quem nasceu com a sua humanidade—, criou o imaginário de que o esporte tem cor e que essa cor é negra.

Ainda não me caiu a ficha de um mundo sem Pelé, para quem não o conheceu e não o viu jogar. No meu tempo de menino suburbano, era comum o termo Pelezinho para designar o garoto preto que passava o dia entre o carrinho de rolimã e os campinhos de terra batida. Penso que esse termo e esse apelido devem durar ainda por muitas gerações. Que venham outras homenagens.

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