Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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O legado de Léa Garcia num país que pouco valoriza o artista negro

Atriz morreu pouco antes de receber grande homenagem em Gramado

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Estava finalizando a coluna desta quarta-feira (16), sobre outro assunto, quando soube da morte da grande atriz Léa Garcia. Juro que estarreci. Léa Garcia tinha 90 anos —marcos de uma vida completados em março deste ano—, mas em pleno vigor de sua forma artística, cheia de gás para o trabalho e realizações de sonhos, tanto para subir no palco quanto para estar na televisão.

Há dois meses, ainda com toda a energia, participou do lançamento de sua biografia, "Entre Mira, Serafina, Rosa e Tia Neguita: A Trajetória e o Protagonismo de Léa Garcia", escrita pelo pesquisador Júlio Cláudio da Silva, obra organizada a partir de desdobramentos em investigações feitas pelo autor sobre desigualdades, raça e gênero, fulcro de seus trabalhos com base nas relações raciais nas memórias da atriz.

Léa Garcia estreou na vida de artista aos 19 anos, em 1952, no Rio de Janeiro, no grupo do Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento, na peça "Rapsódia Negra", dois anos depois de ter o primeiro contato com o diretor, ator, poeta, dramaturgo e político, que também escreveu e atuou no espetáculo.

Léa Garcia em 1959 - Agência O Globo

No início, o sonho de Léa era cursar letras e se tornar escritora. Mas um encontro casual dos dois, em cena digna da melhor cinematografia, no ponto de um bonde, na praia de Botafogo, selou o destino da moça.

"Estava indo buscar minha avó para levá-la ao cinema quando uma pessoa veio ao meu encontro e perguntou: ‘você não gostaria de fazer teatro?’." A pessoa era Abdias, com quem Léa Garcia acabaria se unindo e tendo dois filhos, o primeiro aos 17 anos.

Abdias, já reconhecido militante do movimento negro, usava de maneira pouco usual para arregimentar "atores" para o seu casting artístico. Amante do teatro desde a juventude, onde imperava o racismo, sua ideia era ampliar a presença de negros na dramaturgia brasileira, mas para além dos papéis de serviçais ou estereotipados de criminosos, escravizados, empregados domésticos e porteiros de edifícios.

Conheci Léa Garcia no final da década de 1980, na sede do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), na Lapa, no Rio de Janeiro. O IPCN era um tipo de celeiro de nascentes personalidades do mundo negro: Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos.

Eu era um jovem afoito e curioso, que buscava conviver no meio de ativistas, que pregavam a luta contra o racismo e memorizavam sobre figuras históricas do passado, como André Rebouças, Zumbi dos Palmares e Antonieta de Barros.

Por lá, pela gloriosa entidade negra, que hoje vive com muitas dificuldades financeiras, tanto Léa, como Ruth de Souza e Zezé Motta, eram presenças marcantes e pontuais, falando de autoestima, participando de debates contra o racismo, com foco no empoderamento e na ascensão do negro na sociedade.

O mundo artístico e a literatura eram pautas sempre presentes. Por mais de uma vez vi Léa Garcia se posicionar para denunciar a restrição das redes de televisão e dos grupos de teatro em relação à participação de negros, contratados sempre para papéis subalternos, mal pagos, embora sob exigências desencorajadoras para artistas oriundos de classes pobres e regiões suburbanas.

Quando completou 50 anos de carreira, ali por volta de 2002, escrevi uma peça em sua homenagem, intitulada "Quer Troco?", cuja intenção era encenar tendo no papel principal a querida atriz Dani Ornellas. O drama contava a história de uma mãe solo que vivia em constantes conflitos com a única filha que havia se envolvido no mundo da prostituição.

Mesmo sem nunca ter sido encenada, Léa Garcia me perguntava sempre pelo destino da peça, hoje em meu arquivo, na esperança de um dia vê-la subir ao palco, e onde faria o papel da mãe da jovem.

Era assim, com esse ímpeto e ousadia, que tocou a vida. Colheu, em altos e baixos, os frutos de sua carreira meteórica. Apenas quatro anos após estrear no teatro, era aclamada no Festival de Cannes, em Paris, indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina, por sua atuação no filme "Orfeu Negro", onde obteve a segunda colocação, chamando a atenção do mundo não só para seu trabalho de atriz, mas também do ator Sidney Poitier.

Aos nos deixar na manhã de terça-feira, em Gramado, onde seria a grande homenageada do festival de cinema, Léa Garcia deixa um legado de superação, referência de artistas negros que conviveu e respeitou, como Ruth de Souza, Grande Otelo, Mercedez Baptista, Chica Xavier, Jacyra Silva, Milton Gonçalves, Haroldo Costa e Zezé Motta. E um caminho pavimentado às novas gerações, integradas por Lázaro Ramos, Taís Araújo, Maria Ceiça, Sheron Menezzes, Ícaro Silva, José Araújo, Isabel Fillardis, entre tantos outros.

Perder alguém da vida pública é um fato deveras muito triste, mas perder uma pessoa próxima e amiga, como Léa Garcia, é uma experiência dolorosa demais.

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