Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tom Farias
Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Nêgo Bispo é nossa transfluência ancestral na figura de mestre griô

Ao morrer, quilombola é despertado a um Brasil que pouco o conhecia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Contracolonização é a chave do conceito que norteia a obra e o pensamento de Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo (1959-2023), que acaba de nos deixar, dentro da imaginação do seu próprio lema de vida: "a terra dá, a terra quer" –tema, aliás, de um dos seus mais importantes livros.

No último domingo (3) ele fez a sua passagem, de forma tão inesperada e surpreendente, que nos apanhou de sobressalto e bambaleou nossas pernas.

A repercussão de sua partida –embora ele sempre assegurasse, ao nos dizer "estarei vivo mesmo enterrado"– fez o país cair em si: tinha perdido uma das mentes mais promissoras da humanidade e não tinha se dado conta de que ela existia e estava tão próxima de nós.

O espanto geral faz sentido em uma nação tão centralizada como a nossa, onde os valores materiais e os saberes se encontram (supõe a vã sabedoria) nos centros urbanizados, como Rio de Janeiro e São Paulo.

Mas nós –herdeiros dos muitos nêgos bispos desse país– não adotamos essa lógica, menos ainda a difundimos, pois sabemos que, quanto mais descentralizarmos os saberes e o chamado capital, outras revelações serão produzidas e virão.

"As letras que eu escrevo são sementes plantadas no papel, quando alguém lê essa semente germina", dizia ele, com a força de sua oralidade e o intelecto de sua voz-tambor, lá do recanto da sua comunidade de Saco do Curtume, em São João do Piauí, no Piauí, terra quilombola, onde era o "lavrador de palavras", arando o solo com sua "semente que germina".

O escritor Antônio Bispo dos Santos, autor de "A Terra Dá, a Terra Quer" - Alexia Melo

Bispo funda no torrão brasileiro a filosofia quilombola, que é parte da seiva que naturaliza a existência. É o adivinhador do propósito da vida –o mesmo que profetiza contra a cosmofobia, o medo causado pelo cosmos que se origina no mundo urbano monoteísta eurocristão.

Suas palavras são bússolas e faróis, guiam nossa navegação e iluminam nossos caminhos. De sua imagem serena, sai o ribombo do trovão de uma voz que profetiza tempestades de mudanças.

Não o conheci pessoalmente, mas suas ideias e seus livros deram-me a certeza da proximidade com sua energia e seu espírito. Ele fez aqui o que Sobonfu Somé fez em Dagara —era o "espírito acolhedor em casa".

Em respeito aos mais velhos, dentro da tradição africana –aquele que está mais próximo do ancestral– Nêgo Bispo era o herdeiro de nossa memória, o guardião do nosso tempo. No quilombo ou entre os arranha-céus urbanos, em outras palavras, a cidade, se portava como o griô, olhar fixo e voz serena, sentando-se no meio da audiência, falando como se estivesse em seu terreiro.

Ao olhar para Nêgo Bispo, nas imagens que nos chegam após a sua partida, nos demos conta que ele já nasceu como ele é. E o mais revelador: alguns seres humanos como ele parecem nunca ter nascido criança, nasceram de uma forma não nascida para o mundo –menino grande, jovem adulto. De repente, surgem. Como diz Caniço, personagem de "Toda Fúria", brotam por aí, à luz do dia, à sombra da tarde, no apagão da noite.

Para quem gosta de história e gosta de vida, de vida fora do lugar, fora da caixinha, eu recomendo que leia Nêgo Bispo para a vida inteira! Não é só um ser iluminado de ideias e atitudes que partiu –ele é parte da humanidade que todos nós perdemos ao longo dos nossos anos, mesmo dos nossos séculos.

Bispo estabelece a relação sagrada entre o homem e a terra, da mesma forma que o indígena estabelece do homem com a natureza. Sua voz faz ecoar ensinamentos como testemunhos vivos de que seus saberes vieram de mundo distante, de um incansável semeador.

Então, de onde vem o saber senão da sua ancestralidade, da cosmovisão dos povos negros africanos que já chegaram na América brasileira trazendo na bagagem conhecimento das universidades edificadas ao lado das pirâmides comandas por faraós negros, conhecedores da astrologia, da medicina, da filosofia, da arquitetura, da matemática, da navegação.

A bem dizer, e ele diz isso muito bem, nós não fazemos ou temos profecias, temos imaginários, que se apossam de nós a partir da nossa ancestralidade, de onde imaginamos a nossa vida.

A partir daí nasce o conceito de transfluência, tão poderoso e sublime, correlacionado com a "escrevivência", de Conceição Evaristo. Nêgo Bispo trata por esse meio das relações cósmicas, no bojo da memória ancestral, que é simultânea ao transporte físico (do corpo negro) nos navios negreiros.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.