Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Marielle Franco foi calada a tiro para ser impedida de mudar o mundo

Ainda existem muitas perguntas, e a morte da vereadora é apenas a ponta do iceberg de algo maior e ainda não revelado

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"Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é", disse Carolina Maria de Jesus, moradora da favela do Canindé, em São Paulo, em seu livro de memórias "Diário de Bitita", ao expor sua indignação com a Justiça, que em sua visão só protegia os poderosos.

A frase me vem agora com a divulgação dos mandantes do assassinato da socióloga, ativista política e vereadora Marielle Franco, crime que também ceifou a vida do seu motorista Anderson Pedro Mathias Gomes.

Marielle Franco em cena de documentário da Globo
Marielle Franco em cena de documentário da Globo - Divulgação

Os assassinatos de Marielle e Anderson ocorreram na noite de 14 de março de 2018, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, executados com requinte de crueldade pelo ex-sargento miliciano Ronnie Lessa, assassino confesso de crime encomendado pelo deputado federal Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ) e seu irmão Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, coadjuvado pelo ex-chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, que ajudou na operação e preparação do atentado, só agora encontrando o caminho de elucidação, ao trazer a público resposta a principal pergunta entalada na garganta de todos os que se abalaram com o caso há seis anos: "Quem mandou matar Marielle?".

Este não é crime comum, como os que ocorrem em invasões policiais em favelas, que no geral deixam dezenas de mortos sob a justificativa de "auto de resistência". Os assassínios de Marielle e Anderson estão no padrão dos crimes do colarinho branco, das guerras da máfia do jogo do bicho, que envolvem autoridades e disputa por territórios.

São crimes de altas cúpulas, que envolvem do comando da polícia ao sistema judiciário e grandes somas em dinheiro, investimento que diz muito do poder bélico dos criminosos, mas também mostra o DNA de uma organização que se espraia pelo estado brasileiro, se apossa da coisa pública em proveito próprio, sob aparato da corrupção e do extermínio. Marielle Franco foi atravessada por esse cruel banditismo.

Era vereadora de primeiro mandato, mas uma militante antiga e aguerrida das causas sociais, do movimento de mulheres e de mulheres negras, assim como do movimento comunitário, periférico e de favelas, sobretudo no Complexo da Maré, sua área de atuação política.

Teve uma vida permeada de lutas e sacrifícios. Filha de Marinete Francisco e Antônio da Silva Neto, é irmã de Anielle Franco, atual ministra-chefe da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do governo do presidente Lula.

De formação católica, era "cria da Maré" e teve uma infância marcada pelo trabalho, primeiro como camelô ou vendedora ambulante, depois educadora infantil e, na adolescência, dançarina nas noites cariocas dos bailes funk da Furacão 2000, equipe de som que movimentou por décadas os subúrbios da cidade.

Seu assassinato marca o tempo de culminância do crime organizado no Rio de Janeiro –linha mestra do "escritório do crime". Para melhor entender, é indispensável ler o excelente "A República das Milícias: Do Esquadrão da Morte à Era Bolsonaro", da editora Todavia e escrito por Bruno Paes Manso.

No plano pessoal, é emocionante o relato de Anielle Franco, no livro "Minha Irmã e Eu: Diário, Memórias e Conversas sobre Marielle", da editora Planeta. Anielle não fala só de dor, mas de esperança. A obra, escrita a partir da perda e da morte, detalha a relação das duas, pela idade da infância e adolescência, com texto de capa assinado pela atriz Taís Araújo e prefácio da jornalista Maju Coutinho.

Ao abrir este texto, citei Carolina Maria de Jesus. Não é em vão. Marielle foi morta no dia de aniversário da escritora mineira. Isso é simbólico. A simbologia está no apagamento das duas —a primeira, autora de "Quarto de Despejo", foi tragada pelo sistema editorial, por ser negra e favelada; a segunda, também da favela, foi calada a tiro para, como a primeira, não poder modificar o mundo.

Muitas perguntas ainda resistem no ar. Matar Marielle é apenas a ponta do iceberg de algo maior e ainda não revelado. Há uma sombra pairando sobre o Rio de Janeiro —com reflexo no Brasil todo. Essa sombra empana a democracia, com viés no crime estruturado a partir do estado. Seus tentáculos impõem o medo. A população está acuada e insegura. Há para onde correr? Pelo repertório, só os Brazões e Rivaldos podem dizer até onde vai a teia que tanto os protege e financia.

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