Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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'Manhãs de Setembro' mostra lutas cotidianas das mulheres no Brasil

Série retorna com Liniker vivendo Cassandra, protagonista que reflete batalhas vividas por brasileiras

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Cassandra é uma mulher cotidiana. Acontece todo dia, é centro de si, mesmo no centro dos outros, quando anda pelas ruas da São Paulo sempre cansada e de unhas roídas. Ela não tem tempo de mordiscar as próprias, pois está a todo momento correndo. Cassandra vai assim: sempre sendo.

No mês nove, com a volta da série "Manhãs de Setembro", Liniker retoma a cantora, entregadora de aplicativo, mãe e amante para si. Pelas mãos não trocadas pelos pés, segue firme os passos da personagem comum, tão comum que se dilui nas nossas tramas diárias. Incomum são os outros que não enxergam Cassandra —como Cassandra que é— na sua luta para continuar sempre sendo.

Cena da série "Manhãs de Setembro" - Divulgação

Soluçar, sorrir, xingar nas telas, de maneira natural, que nos faz também recobrar a humanidade gasta para pagar as contas. No banho de banheiro apertado, no cômodo pequeno em que se pode abrir as asas sem ninguém para podá-las, na intimidade, na defesa de sua identidade, o que é Cassandra senão uma mulher cotidiana com a qual precisamos lidar todos os dias para conseguirmos também manter em nós alguma rotina que valha a música no final do expediente?

E Liniker, que soa como água, vai de sólida à líquida em dois tempos. Prometi que diria isso ao vivo a ela, mas já deixarei aqui registrado para o futuro. Na sua interpretação, o que se vê é o que há para ser visto: a arte e a vida dançando tão sincronizadas que não permitem mais saber quem se confunde com quem. Quem imita quem. Como água, a gente olha e sabe que é, só, mas nunca solitária. Há tantas ali, nas profundezas.

Nos episódios em que canta, revela sua alquimia. Transforma chuviscos que respingam nas mãos calejadas de unhas esmaltadas de ontem em rios que escorrem pela secura da cara. Desenha linhas timidamente cintilantes que salgam os poros —ou feridas— de mais uma noite exaustiva. Cassandra pouco dorme. Pouco come. O tempo lhe faz desafiar a caatinga do mercado de trabalho exaurido enfrentado por quem, como ela, dentro da ficção de seus desejos e fora da realidade erodida, precisa correr atrás de serviço para que ele não fuja das mãos. Quando aperta a si mesma num abraço que também pode ser sustento, apoio, autoproteção, consegue, mais uma vez, lembrar de quem é: Cassandra, ou Liniker, ou tantas águas outras.

Seu filho, fruto que jamais imaginou ser capaz de gerar, dança contigo. Primeiro descompassado, depois atencioso até, finalmente, compreender que ritmo leva tempo, algo que Cassandra pouco tinha, mas precisou aprender a ter. Sua família, seu amante, namorado, seu companheiro, todos dela bebiam um pouco —ou muito, a ponto de desalinharem seu fluxo. O pai, a mãe, a Vanusa. Se pudesse sentar com Cassandra para conversar sobre a vida, os olhares se perderiam no vasto horizonte que dispersa a atenção para um lugar inalcançável, aquele no qual nossas comuns existências pesam pouco ou quase nada e descansam. Quando a gente vê, não se lembra mais do que estava falando, só de que precisava ter falado.

Cassandra é de verdade. Como um recado, ela nos deixa avisado que todos os dias alguém também vive sua personagem. Quem é real, fabula tanto para aguentar a angústia dos tempos de agora que só na imaginação encontra o caminho desviado da violência, da queda, do abandono, da dor pura e simples. Dor comum, também. De todas as pessoas.

No tom escuro de sua pele, cobre-se do universo profundo das histórias passadas que deram aos seus e suas, aos ancestrais e aos descendentes, o tom de tantas nações e culturas, de tantas Áfricas dentro e fora das Áfricas. Cassandra existe em todas as quebradas. Inteira, íntegra, focada, de pouca conversa, mas muitas ideias. Ela é o povo que continua cotidiano.

Que "Manhãs de Setembro" possa inundar mais pessoas que, como Cassandra, são comuns e acontecem todos os dias. Gente que lava o rosto, olha para si mesma e não se esquece de continuar sempre sendo.

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