Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos
Descrição de chapéu África

Com reencontros históricos, povo preto é capaz de se manter unido

Desde a formação das primeiras culturas, há registros de tempos grandiosos demais para a miudeza racista

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As diásporas separaram o que a África nunca abandonou: seu povo. É do reencontro que ele se refaz a cada porvir. Um processo difícil devido ao genocídio vigente, mas que ainda mantém os irmãos vivos, já que a vida é desafio.

No Brasil, as quebradas são a prova disso. Prova viva. Usamos "trombar" como expressão para nos referirmos ao encontro com alguém desejado ou inesperado. Após o período de colonização e durante a implementação do neocolonialismo, pretos e pretas precisaram se trombar.

Reconhecer-se não apenas na pele e nos traços do outro, nas texturas de cabelo e nas diversidades culturais cuja matriz africana sempre foi a mãe a unir filhos e filhas sobre um chão firme, antigo, fértil e com a memória talhada nas rochas ancestrais para nunca esquecer de tudo pelo que foram obrigados a passar. O reconhecimento foi, também, com as suas tantas histórias.

Cheikh Anta Diop, um dos principais estudiosos do mundo, nasceu perto de Diourbel, Senegal - Divulgação

Desde a formação das primeiras culturas, passando pela origem do que se entende por civilização humana, há registros de tempos grandiosos demais para a miudeza racista.

Quando a pessoa negra tromba Cheikh Anta Diop, esteja ela na África ou nas demais Áfricas do planeta, ela se depara com a importância que seus antepassados tiveram para a construção de grandes cidades e seus mistérios —ou conhecimentos que dariam origem ao que se entende por universidades. Depara-se com quem constituiu as primeiras formas de vida em comunidade, vida em cultura. A sensação inicial é a de ter encontrado o capítulo da história que finalmente lhe cabe: o primeiro.

Trombar tantos e tantas que detêm histórias negadas é um processo inevitável. O povo negro sempre contará com os seus para resgatar e compartilhar saberes úteis, vitais, que permitam resistir ao extermínio descarado e rancor do Ocidente branco. Fácil não foi, não é nem será.

Enquanto se tromba Martin Luther King Jr. e Malcolm X, também se faz necessário não vacilar e sobreviver às ruas, à fome, ao desemprego, à hipertensão, às violências físicas e psicológicas. Quando se tem um tempo para trombar o professor Ivan Van Sertima e aprender sobre quem chegou primeiro, de fato, às Américas nativas, também se precisa conciliar com o corre do dia a dia no transporte público, disputando espaço com o cansaço.

Para trombar Malidoma e Sobonfu Somé a mente precisa estar calma e límpida como água. Só assim será possível entender como os dagara constituíam suas identidades, intimidades e saberes ancestrais que dão ao mundo a chance de refletir sobre outras perspectivas.

Durante uma aula e outra —cujas bibliografias provavelmente o excluem, há que se tirar um tempo para trombar Molefi Kete Asante e aprender de onde vieram os primeiros filósofos— do Kemet nunca devidamente citado nas escolas.

Para além de todas as moléstias do racismo, precisamos nos trombar. Temos de chegar aonde estiveram aqueles e aquelas que contaram sobre nós antes mesmos de nascermos.

Há muitas viagens a serem feitas até trombarmos com Mumia Abu-Jamal e entendermos por que o Partido dos Panteras Negras foi tão temido e perseguido pela polícia, política e mídia brancas americanas. Aprender sobre as bases do movimento negro brasileiro ao trombar com Abdias Nascimento e Sueli Carneiro.

Perceber as complexidades teóricas que resultam em discussões de alto nível —e que contribuíram para o amadurecimento das ideias libertadoras e revolucionárias— ao trombar Marcus Garvey e W.E.B. Du Bois com suas divergências sobre uma África pancontinental. Não só aos brancos pertence o direito de discordar intelectualmente.

Há quem se trombar ainda. Lumumba, Sankara, Biko, Toussaint L’Ouverture, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, Clenora Hudson-Weems, Ifi Amadiume, Neusa Santos Souza, Baldwin, Marimba Ani. Favelas, quilombos, bibliotecas, terreiros, organizações autônomas, nas próprias famílias há quem se trombar ainda.

O poder negro, como muito abordou Kwame Ture (Stokely Carmichael), está também na capacidade de se unir enquanto raça detentora de história e legado. Ter consciência disso é o que mantém os irmãos vivos.

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