Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Por que escrevemos? Talvez pela chance de permanecer

Escrevemos porque o saber precisa se manter entre nós

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Por que ainda escrevemos? O que nos motiva a continuar marcando páginas e mais páginas com palavras que até então existiam apenas em nossas cabeças? Para além do ofício remunerado e da sobrevivência, o quê? São muitas as respostas. Por essa razão, irei me ater à pergunta: por que ainda escrevemos?

Não me recordo exatamente quando comecei, porém a motivação se fez inesquecível. Escrevia porque não falava. Sempre fui calado de boca e barulhento de pensamento. Estabeleci, primeiro, um longo diálogo comigo mesmo, sem registros diários, apenas com o impulso de traduzir angústias de uma vida normal demais.

Nada se fazia extraordinário. A mesma pobreza, as mesmas faltas, mas os textos, esses não, nunca se repetiam. Da caçamba de lixo e carcaças de carros aos morros de barro vermelho, olhar para os cantos que ninguém via permitiu que contasse a mim mesmo o que via —da maneira que via. Não era bom nem ruim, só normal, pelo menos para mim. E por que continuar?

Na escola, escrever era mais uma obrigação. Copiar, na verdade, como já relatei aqui. Na faculdade era técnica. Na vida, muitas vezes entre uma condução e outra, durante o intervalo do trabalho, a única saída. Fosse no livro, na reportagem, no relatório, no caderno, no artigo, no e-mail ou na carta nunca entregue, o que tinha diante de mim era o não dito. A ausência da oralidade fazia com que cada frase fincasse no silêncio de quem lia os tantos símbolos e sentidos por debaixo da grafia. E por isso escrevemos?

O exercício da escrita
O exercício da escrita - Foto de Green Chameleon na Unsplash

Na literatura, fazemo-nos presentes por qual razão? Se há nessa arte em muito amaldiçoada por arrancar das profundas águas de nosso âmago algo a ser contato ainda que despretensiosamente, por que continuar? Sua capacidade de recriar mundos e fingir respostas para questionamentos infinitos, inquietar as mentes alheias, ebulir espíritos amansados vale a continuidade?

Dom Quixote e Sancho Pança sobre cavalos
Dom Quixote e Sancho Pança, personagens de Miguel de Cervantes em 'Dom Quixote de la Mancha', obra tida como o nascimento da literatura moderna (cena do filme 'O Homem de la Mancha', de 1972) - Divulgação

Quanto à grande imprensa, que, já se sabe, é pouco aberta à diversidade social, uma vez que mantém a brancura majoritária em suas redações, conforme apontou o Perfil Racial da Imprensa Brasileira (2021), brinca de tokenizar e muitas vezes chama de democracia a vontade de uma maioria econômica que, na rua, no corre, no povo, na massa populacional, é minoria. O que justifica a insistente presença escrita de uns e umas? Talvez muitos porquês.

Escrevemos porque o saber precisa se manter entre nós e entre os outros que tentam nos desatar todos os dias. Também escrevemos para manter vivos os dialetos que fazem da língua estranha e impostora algo realmente comunicável, que nos chame para a conversa, não para o sermão arcaico. Que nos coloque em perspectiva, não na mira. Escrevemos porque ainda há como se fazer história assim —como permanecer na história assim, não pelo viés da vaidade que atende às epifanias do ego. História pelo registro da época, daquilo que se vive e nem sempre nos deixa tempo para lembrar de garantir a lembrança no amanhã. Escrever nos permite ameaçar o esquecimento com o conto.

Também escrevemos para não revelar tudo. Há no mistério das entrelinhas as artimanhas em códigos que já salvaram povos de serem aniquilados. Textos que se tornaram discursos, redigidos para serem ditos, mas que até nesse dizer proclamado em palanques e manifestações revelavam a poucos o oculto de suas passagens. Faca de dois gumes. A escrita exige manejo e a profundidade de seu corte atenderá ao peso da mão que navalha.

Para muitos, não há nada de especial no ato de escrever. Enquanto o realiza, parágrafo algum vai muito além do relato. É no outro que a apatia do autor pode ser transmutada em extrema simpatia —ou desprezo. Inevitavelmente algum sentimento irá se manifestar.

Por que escrevemos? Em meio a tantas respostas, fico com uma que, acredito eu, é comum a todos e a todas que ainda se debruçam nas letras: escrever é dizer sem dizer, é como olhar para um canto que só você vê —e é visto. Aos que nos leem, deixo outra pergunta. E por que não escreveríamos?

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