Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Descrição de chapéu plano diretor

Plano Diretor deveria incluir a periferia em um desenvolvimento socialmente horizontal

Em meio a debates, resta saber o que sobrará para essas regiões se não o já conhecido abandono e desapropriação

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Trinta anos para construir uma laje. Em duas décadas, a casa do vizinho passou a ter um portão que lhe conferiu mais segurança e privacidade. Ao longo dos anos, o tom alaranjado foi desaparecendo. Pouco, mas foi. Sob o manto das pequenas conquistas de uma vida inteira ainda pulsam os tijolos todos, com cor de lava, a concretizar tanta luta por uma casa realmente capaz de ser lar. Tempo e espaço.

A cidade é construída por memórias. Reconstruída também. Do imaginário de quem nela vive, formula-se o urbano. Finca-o na ideia das gerações de hoje como promessa de futuro para as do amanhã.

Prédios na região do Tatuapé, uma das regiões de São Paulo onde houve intensa verticalização desde o Plano Diretor de 2014
Prédios na região do Tatuapé, uma das regiões de São Paulo onde houve intensa verticalização desde o Plano Diretor de 2014 - Eduardo Knapp - 20.jan.2022/Folhapress

Há um plano, sempre há. Onde desenvolver? Qual área expandir? A quem abrigar? Quem excluir? E se não couber? Cabendo, há que se lotear, vender, rifar, o que for preciso para fazer da terra um direito caro. Há sempre um plano.

Os que chegaram depois do longo êxodo às terras de ninguém, ninguém também se tornaram durante muito tempo. Sem direito ao devido reconhecimento de suas posses, sem a atenção para as necessidades que lhes perturbavam a barriga e os pensamentos, foram ficando e se fincando.

Do seu imaginário, um plano foi bolado —o de sobrevivência. Mais uma vez, a diversidade como estratégia de sobrevivência, não de marketing. Por isso tanta assimetria, variação e risco. Aposta-se na chance de permanecer no tempo e no espaço, com o que se tem de tempo e de espaço. Há sempre um plano.

Com os debates em torno da revisão proposta para o Plano Diretor que pretende esquematizar o desenvolvimento da cidade de São Paulo, resta saber o que sobrará para as regiões periféricas se não o já conhecido abandono e desapropriação.

As mãos, calejadas de nivelar chão e subir parede, tremem novamente por medo de ficarem vazias. Sem chave para dar volta no portão e entrar, sair, estar. Atualizar a cidade é necessário. No caso da capital, quantas cidades há nela?

Quantos projetos precisariam ser feitos levando em consideração as drásticas desigualdades que angustiam as arquiteturas desde o Morumbi até o Jardim Pantanal? Há sempre um plano, mas nem sempre seu planejamento resulta em desenvolvimento horizontal.

Verticalização nos miolos de bairro do centro expandido. Verticalização nas periferias que, enquanto o céu não se faz limite, vão subindo cômodos e mais cômodos para caber família dentro de família.

Expansão do transporte público nas regiões do entorno do centro cujo foco será o adensamento nas áreas mais valorizadas. Expansão do tempo dentro do ônibus para sair do Jardim Camargo Novo e bater ponto em Pinheiros.

Durante muitos anos, ouviu-se nas conversas de jornaleiro ou portão o desejo de se mudar. Havia um plano de fuga, na busca por espaços onde realmente a vida poderia habitar mais tranquila, completa.

O asfalto chegou e na memória restou apenas sua penumbra como promessa esquecida de modernização. Ainda assim, daria para ficar. Já se tinha memória naquele lugar. Criou-se outro plano: o de construir ali, mesmo com dificuldade, a cidade —Tiradentes, Líder e por aí foi.

Fazer das favelas bairros estabelecidos. Do papelão ao cimento. De lugar algum ao CEP. Do ponto de ônibus lotado ao ponto batido sem atraso. Qual é o plano? Qual é a cidade?

Em meu primeiro livro há o texto "Pedreiros do Universo". Nele, abordei como vi as transformações ocorridas na periferia onde vivo pela perspectiva das casas. Quem vem de fora, hoje enxergará uma periferia estabelecida, com o mínimo de estrutura para se manter erguida.

O que não conseguirá ver, no entanto, é que em cada uma das colunas de concreto a sustentar a casa, envergaram-se tantas outras —com décadas de trabalho lavando roupa e fazendo bico— cuja memória é o verdadeiro registro do espaço no tempo. De como o espaço se deu ao passar do tempo.

Somente estas pessoas, marginalizadas pela incapacidade dos diretores de incluírem em seus planos quem ainda orbita o direito à moradia popular digna, sabem quanto tempo custa para se ter um espaço. Só elas têm, de fato, um plano concreto.

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