Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

A vida dos bichos das periferias em tempos mais brutos

Era cachorro de ninguém, melhor amigo de qualquer um, até de quem batia

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No ponto de ônibus, estirado no chão, queimava feito carcaça no cangaço. Estava mais para comida de carcará do que para Dourado de Lampião. Os ossos disputavam com o sol o que sobrava de pele. Jamais imaginaria que no caminho da morte teria início toda uma vida. Simba tinha cor de leão, mas era cachorro. Seu ouro derreteu no calor urbano da vila sem muita árvore e se revelou caramelo. Um ser doce.

Domingo, terça, feira, açougue, padaria, onde havia gente também havia cachorro. Chimando, esperando uma moela voar do prato ou pão da sacola. Era cachorro de ninguém. Melhor amigo de qualquer um, até de quem batia. "Vagabundo", "vira-lata", "pulguento", sempre atento e indo atrás de uma sombra que lhe aliviasse a moleira com um passar de mão. Parava no portão —quando tinha portão— e não entrava. Sabia que sem convite receberia apenas paulada. Nos olhos, tudo, menos agressividade. Não há como andar pela vila sem lembrar das tantas matilhas que desbravavam quarteirões atrás de fêmeas no cio.

Corisco, Ligeiro e Jardineira
Ligeiro, Corisco e Jardineira - Reprodução


Se era gato, imperava nos telhados e à noite fazia seus rituais. Libertava-se, vivia o instinto como instinto é —um fazer por sobreviver. Miados, pulos, vasos derrubados, briga, correria, urina forte para demarcar território e atrair parceiras, o que fosse da noite era também dos gatos sempre ocupados com suas manias peculiares. De um terreno baldio, alguns meses depois dos musicais noturnos de tirar sono, saía parida em mato alto a criatura minúscula, de olhos azulados e carência óbvia. Vinha em direção ao humano na expectativa de que lhe salvasse do abandono desumano.

Tais fotografias, entretanto, saudosas não são. Durante décadas, principalmente as que vi e vivi —anos 1990 e 2000– com mais percepção do mundo ao redor, o cenário era de pobreza e sofrimento. Inclusive para os hoje popularmente chamados de pets.

O talho na cabeça disputava a dor inevitável com a pata quebrada e arrastada mole, quase tão sem vida quanto a quem pertencia. Fome, indiferença, doenças estourando a pele e florescendo vermelhas, flamejantes, sem ninguém para soprar. Numa realidade de extrema desigualdade social, a boca que come é a que tem mais sorte. Amanhã nunca se sabe, e para bicho —se não for o do jogo— sabe-se menos ainda.

Animais pobres e não pobres animais. Além da "carrocinha" e "chumbinho", que à época eram os terrores dos que já sentiam pelos animais alguma estima, uma percepção social e cultural de que por serem bichos eram descartáveis ou bastava dar água e comida, além do desconhecimento sobre o que significava senciência entre não humanos, condicionava-os à precariedade.

Uma foto que vale por mil colunas; memórias de cachorros de rua na zona leste
Memórias de cachorros de rua na zona leste - Kelen Lima

Que água, qual comida? Quente e cheia de pelos, arroz seco ou restos de refeições humanas cheias de produtos que poderiam gerar doenças várias. Que doenças? Basta dar leite, água, no máximo algum comprimido para trato humano da dor. Que dor? Está uivando assim porque é "manhoso", "chato", "frescurento", e o que mais do humano fosse possível atribuir ao ser para lidar com ele como se lidava com os pares de espécie: indiferença aos sinais de sofrimento. Que sofrimento? Morreu, agora não sofre mais. Pode colocar no saco de lixo e deixar na esquina.

Ruindade? Nem sempre. Falta de informação e condições sociais em tempos nos quais a vida bruta não contava com dinheiro para veterinário ou ração boa. Épocas em que o amor, carinho e cuidado se traduziam por vezes em tirar do prato a pouca carne e jogar um pedaço para quem sorri com o abanar do rabo. Amor, carinho e cuidado de um ser salgado pela desigualdade.

Hoje a quebrada traz um cenário menos ruim para quem tem bicho. Com certa melhoria por meio de renda e informação, amor, carinho e cuidado mudaram ou ao menos se tentou mudar seus formatos para algo mais humano, de fato. E para os bichos que não têm ninguém? Falta muito. Falta tudo.

Simba viveu conosco por muitos anos. Tivemos condições de levá-lo ao veterinário em seus momentos finais. Condições —palavra que nos afeta até hoje. Até na morte.

No seu olhar de despedida, vi amor. Vi um ser doce.

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