Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Falta de luz é um temor que oscila entre desespero e apatia

O que a mente pensa quando não há luz? As mãos ganham notória importância

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Um dia sem ideias. A olhar para o céu, apenas nuvens, não pensamentos voando alto atrás do que precisa ser feito em terra. Ao observar as mãos, não mais acariciar os calos como pontos e vírgulas de um período incessante de trabalho. A mente busca alguma urgência. As pontas dos dedos se sentem perdidas num vasto salão sem música, no qual elas não precisam mais dançar a dança das causas todas sobre as telas do celular descarregado. Parece que não há o que fazer, mas sempre há.

Quando as luzes elétricas eram substituídas por velas, o fulgor se encolhia. Sem iluminar todos os cantos, a casa, o barraco, aquele pouco de tudo crescia pela penumbra a jantar panelas e pratos vazios. Quando havia uma geladeira, dela só silêncio. Fazia-se, de fato, gélido túmulo para a morte das comidas.

Sem o que assistir, ouvir ou se prender por meio das correntes elétricas. Acabou a força. Parece que não há no que pensar, mas sempre há.

Se a vida já é desafio aos olhos estalados das lâmpadas de luz cada vez mais fria, sob a alaranjada auréola da candeia ela se mostra desesperançada, sem brio. No respirar suave de quem ficou sem luz, um temor se projeta na parede esfarelada como sombras várias, vultos inquietos na disforia que altera movimentos oscilando entre o desespero e a apatia. O que a mente pensa quando está sem luz?

As mãos parecem ganhar notória importância. Olham por nós. Tateiam tudo e fazem lembrar que se tem pouco.

Vela e mãos
Anita Jankovic na Unsplash

Na rua, um silêncio incomum demonstra a força imperativa da humanidade ainda elétrica demais, carregada demais e dependente dos choques a estimular o bater constante dos corações cansados. É preocupação, no final das contas. Inevitável —e vital— preocupação.

Uma vela no banheiro. O rosto no espelho se mostra outro. O pouco que se vê ganha destaque nunca visto. Na cozinha está aquela que tenta dar conta da pia, do fogão e do café preto na mesa. Outra no quarto para tirar o único sossego que se pode ter —aquele provido por Morfeu. Há luz no sonho? De onde ela vem? Com medo de que a chama se espalhe e a todos consuma, restando apenas mais escuridão, o olhar atento de criança acompanha as perguntas infantis a ninar a razão. Resta rezar. Há sempre uma vela para proteção.

Sem energia elétrica no bairro, o mundo volta a ter o tamanho de uma esquina. Sair é mais perigoso. Mas ficar é solitário. Uma ida até o portão para conferir se a rua toda também transborda penumbra. O umbroso ribeirão revela poucas pedras coloridas às suas margens. Conversam, sentem-se conectadas pelos assuntos triviais que vieram à luz a convite das calçadas. Se não há o que fazer além de esperar, então que se espere sem desespero. Quem vive sob a luminescência de velas acesas a cada dia para guiar os caminhos tortuosos da luta por sobrevivência sabe que no fundo é tudo treva.

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Lampiões a gás na região do Pateo do Colégio - Rubens Cavallari/Folhapress

O descaso com o fornecimento de luz se faz nas promessas. Voltará daqui a quatro, oito, 24 horas. Passam-se dias, semanas. As palavras às vezes são engraçadas. Tristemente engraçadas quando o que as unta é a ironia inevitável e, por isso, detectável. "Promessa", o substantivo comum que faz lembrar aquele outro próprio na antiguidade grega que nomeou o titã responsável por roubar o fogo e levá-lo à humanidade para que se alumbrasse.

Acabou a luz. Há tempo para levar o pensamento longe, num olimpo de ideias e questões abstratas que desviam a atenção da gente toda da angústia de não saber se todos os alimentos serão perdidos, se enxergará os doentes no quartinho dos fundos, se o medo do breu irá engolir esperança qualquer. Ligar para Prometeu dos novos tempos é inútil. Ele apenas dará um novo prazo para ser descumprido. Uma nova promessa para ser quebrada.

Sem excesso de informações, entretenimento rápido, comunicação incessante, recursos básicos para uma vida submissa à luz. O que os outros —aqueles sempre distantes de nós, mas tão perto do sol, sempre iluminados por seus caros geradores, estarão a fazer?

A mente busca alguma resposta, mas apagaram-se as luzes.

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