Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Descrição de chapéu
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A bondade dos ruins e a antivida como esmola

Para o bem dos autodeclarados bons, há que se aceitar a morte ainda em vida

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Há certas versões do ideal de vida comum construídas pela moral das pessoas autodeclaradas boas que despertam curiosidade para, então, o horror. Ao justificarem seus imperativos com concepções sobrenaturais e subjetivas —por vezes psicóticas, tais autores de multiversos onde paira solta a perversidade acreditam piamente que sua bondade é a solução definitiva. Porém, basta observar com os olhos dados pela terra os espelhos a forrar o céu que se percebe o elaborar da ilusão a produzir oposto reflexo. Então, o horror.

Os discursos recorrem à imaterialidade da existência para ganhar corpo e corpos. Fundamentam-se principalmente na ideia obsessiva da dicotomia entre o bem e o mal, besuntando de medo as carcaças de um povo a ser melhorado, conforme acreditam os ditos bons. Quando falam, amaciam o léxico, teatralizam o pragmatismo de seus planos e encenam o que virá a ser o grande final das suas obras em vida: a falsa sensação de que cumpriram sua missão e por isso serão recompensados. A falsa sensação de poder que o ganhar traz. E o que ganham, de fato?

Ilustração em preto e branco mostram três anjos infantis dançando um ao lado do outro
Gordon Johnson por Pixabay

Os bons dizem para que se exista sem viver —deseje, mas não experiencie; sinta, mas não expresse; procure, mas não ache. Para o seu bem, o outro não deve ser o que sabe de si e tenta aprimorar conforme o tempo lhe empurra os ponteiros. O outro deve sempre refletir o seu inverso, ainda que perverso, no qual tudo o que lhe conferiria identidade perde o semblante. Olha para o céu, vê-se espelhado. Para o seu bem, então, o horror.

Estes bons não se contentam só com o intangível. A conquista deve ser completa. O corpo vale muito. Ao longo da história, o corpo sempre valeu demais. Invadi-lo, dominá-lo, colonizá-lo, criminalizá-lo para, finalmente, destruí-lo. É com a matéria-prima da corporalidade que se modela uma sociedade, que se dita o movimento do torso com pés e mãos controlados pelos bons. Aonde se vai, o que se toca, onde se fica, quem os toca, os corpos são o que ganham os bons interessados pelo poder que a falsa sensação de ganho traz.

Hoje, vê-se estes bons na sanha pelo controle de específicos corpos. Para o bem deles, há que se aceitar a morte ainda em vida. A morte das vivas, das tantas outras ainda vivas e a viver, custa para elas, não para os bons. Este é o preço a ser pago por quem teve de si algo roubado, depois destruído, depois sufocado. A vítima que paga —e se não paga, criminosa será, custe o que custar.

Dizem, os bons, que é preciso aceitar que o corpo, tangível como é, quando tocado e trincado pela violência, aceite seu destino e arque com as consequências. Para o seu bem, o corpo outro tem de morrer ainda vivo. A vida das mortas é um ganho para os bons que veem na realidade sofrida a realização da sua distopia moral que lhes confere, por incrível que pareça, sensação de ganho. Oferecem como esmola a antivida. Para o bem dos bons, o horror das outras.

A bondade que justifica o genocídio de povos vulneráveis é uma. A bondade que se mune da fé para propagar o terror, outra. A bondade que desumaniza, condena, oprime e assassina corpos, corporalidades e identidades divergentes dos reflexos ditados pelos espelhos do céu inalcançável é ruim. É a bondade dos ruins.

Pelo bem se mantém a pobreza, arma-se tarados por brutalidade, condena-se a infância a uma não vida adulta precoce, o corpo despreparado ao cárcere ou ao parto sem volta, o corpo despreparado ao cárcere ou ao parto sem volta.

Os dias comuns estão estranhos. Parecem caminhar em sentido contrário, numa linha rumo ao abismo e não ao horizonte com suas promessas distantes, impossíveis, mas capazes de fazer da vida trajeto com memória, rastro com pegada. Capazes de fazê-la vivível.

Antes do encontro com o breu da queda sem fim, há que se ouvir com atenção o que dizem as vozes inebriantes dos bons e perceber se, afinadas no tom do então horror da ruindade, não sussurram elas: "Para o seu bem, pule".

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