Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Templos, preces e quermesses: uma vela acesa para a bênção do 'eu'

Nas festas religiosas, sentia como se não pudesse sentir

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Quando criança, tinha medo do interior das igrejas. O teto alto demais, o forte cheiro da cera de vela e os olhos bem abertos dos santos a olhar por debaixo de sua pele intimidavam. Também eram frios o ambiente e o silêncio. Já o exterior lhe intrigava. Como um castelo daqueles poderia brotar do meio de uma praça cheia de lixo, com grama falhada que nem dava mais para pisar enquanto brincava de caçar grilos? Não era grama, na verdade. Era mato.

Lucas Nascimento, 24, foi perseguido em sua congregação neopentecostal por ser gay. Tentaram "curá-lo", o que causou sofrimento e traumas eternos, diz ele. - Danilo Verpa/Folhapress

Ao passo que ele crescia, a igreja permanecia igual. O tempo dela era outro. O do menino se dividia em vários para atender pai, mãe, despertador, escola, rua, a terra e o céu. Antes de dormir, rezava o Pai Nosso sem entender metade do que dizia. Ao término da prece, iniciava a conversa. Contava seu dia, lembrava dos medos e sempre deixava de detalhar as vergonhas ainda incompreensíveis ao substituí-las por uma simples frase ecoada no estrelado teto dos seus pensamentos: "Você conhece a verdade em meu coração, então não preciso me explicar". Outra temperatura emanava do seu templo interno. Um calor de amornar. Apenas a única vela acesa e nenhum olhar a vasculhar os cantos de si que ninguém via. Era assim, com um templo dentro de si, que se sentia, sem medo, o menino.

A religião entrou em sua vida como o nome de batismo, sem que tivesse escolha. Porém, diferentemente dele, ela não o acompanhou. Perdeu o dom de chamá-lo, tornando-se incapaz de sequer encontrar espaço em seu templo íntimo. As conversas, certo tempo depois já sem rezas prévias, seguiram por mais alguns anos. Amornavam, com uma só vela, sem olhares a vasculhar os cantos que só ele, o agora adolescente, via.

Certo dia, ao observar a mesma igreja da pracinha, firme, de portas e janelas fechadas sob o sol que pedia para entrar em tudo e todos, lembrou-se das quermesses. Como um evento tão simples poderia mudar quase que por completo o semblante de construção tão rígida? Se a festa junina de rua era a primeira opção por ser mais em conta —com suas batatas doces assadas em fogueiras feitas do mesmo jornal que envolvia de notícias velhas jovens e verdes bananas, ir às quermesses parecia privilégio. Conseguir levar pelo menos o dinheiro para pipoca já dava a quem não tinha quase nada algum peso no bolso e leveza no rosto. Tal festa fazia da parte exterior da igreja um pouco parecida com a parte interior do agora rapaz. Amornava sem vasculhar. Ainda assim, a memória veio por outros motivos.

Nestas mesmas festas, sentia como se não pudesse sentir. Para fora de si, não era permitido gostar do outro —um diferente, mas igual— que sorria de leve quando era reparado. Não poderia mandar correio elegante para ele, pois era ele, justamente ele, e não ela. Não seria permitido dançar quadrilha; não haveria espaço para lhe oferecer uma maçã do amor; não existia fila que o levasse até a barraca do seu beijo. Não tinha direito ao "não" saído da boca dele. Viu-se, o rapaz, agora sujeito, submisso aos olhares frios de santos invisíveis a lhe privarem até mesmo de vivenciar a tentativa de expressar seus genuínos sentimentos.

Para uns, "se o não é garantido, então há que se buscar o sim", para ele, nem a chance de receber o não lhe era conferida. Foi a primeira vez, numa morna quermesse de igreja, sob o índigo manto do universo descrente de nós a observar a confusa vida dos homens abaixo, que sentiu o frio interior e, com um sopro vindo de fora, observou a única vela se apagar. Aquela única acesa por dentro. Tiraram-no até o direito ao não. Deixaram o ambiente e o silêncio.

Certa noite, ao visitar o templo seu, notou-o estranho, mexido. Teve sua última conversa. "Então vai ser assim? Jura que sou e serei assim? Justo eu... Justo! Aceito a condição. Sempre aceitei", sussurrou enquanto tomava cuidado para não apagar a única vela recém-acesa a amornar seus cômodos incômodos.

De um sentir que dispensava palavras proferidas como mistérios pelo mudo infinito, encerrou ele sua própria oração: "E não precisa se explicar, eu conheço a verdade nos nossos corações".

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