Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu

Nem morrer eu posso mais

Onipresença, onipotência e onisciência são requisitos básicos impostos a mães e pais

Mãe segura a mão de bebê recém-nascido
Mãe segura a mão de bebê recém-nascido - Fotolia

Em junho de 1998, fui assaltada no centro da cidade. Naquela fração de segundo da descarga de adrenalina, vi minha vida ameaçada e só me passou uma coisa pela cabeça: não posso morrer, tenho uma filha de um ano. Simples assim.

Pensamento olímpico que me colocava diante da impossível obrigação —não digo só desejo, mas verdadeiro imperativo— de garantir que eu não morreria, pois que mãe seria eu se a tivesse deixado órfã com um ano? 

Além dessa “missãozinha básica” de ter poder sobre vida e morte, desde que minhas filhas nasceram supus outras tantas coisas que eu não deveria ou poderia fazer ou deixar de fazer.

Primeiríssima missão: protegê-las de tudo e de todos em tempo integral —os super-heróis não nos encantam à toa. Onipresença, onipotência e onisciência são requisitos básicos impostos a mães e pais desde o século 18. 

Impedir que caíssem no chão, mas também impedir que caíssem em si, descobrindo que elas não eram o centro do meu universo. Impedir que sofressem ao descobrir que mamãe e papai são namorados —posição que elas jamais poderiam ocupar. E haja choro e ranger de dentes a cada vez que saíamos ou fechávamos a porta do quarto com alguma delas querendo ir junto. É claro que hoje são elas que fecham a porta na nossa cara para ter uma vida privada —não sem um percurso de situações na infância, que nos soava como fadado à eternidade. 

Junto com a convicção de que elas deveriam respeitar o espaço dos pais, esperar o fim do jantar para comer chocolate, tomar uma vacina doída, largar chupeta, peito, fralda, berço etc., vinha o imperativo de fazer tudo isso sem que elas sofressem. Algo como: ter um bebê/criança que nunca chorasse, que dormisse quando conviesse e que fosse feliz. Mais alguém ouviu a música do seriado “Missão Impossível” ao fundo?

A chegada da irmã não traria ciúmes e elas seriam as melhores amigas. No entanto, ouvimos “pode levar a irmãzinha de volta para o buraco de onde ela veio” em todas as versões possíveis: choro, retorno a chupeta, birra, tristeza profunda, decepção com os pais traidores. Um dia, com elas já adolescentes, uma passou a chamar outra de “meu bebê”. Qual era mesmo a escada que eu deveria subir de joelhos para agradecer a graça alcançada? Levou um pouco mais de uma década, o meu “projeto irmãs”, e nunca houve garantia de sucesso.

Também cabia a mim que elas nunca fossem seduzidas por nenhum tipo de droga —inclusive beber álcool antes dos 18 anos— o que, vamos e convenhamos é tão improvável de acontecer quanto os caciques do PSDB serem presos. 

Nunca levariam “toco” do namorado, lição que eu já aprendi já na porta do jardim 1, quando minha filha gritou que o Vinícius era seu namorado, ao que ele respondeu “não sou não”. Naquele momento descobri que poderia sentir ódio mortal por um moleque de três anos. Sofrer por amor? Jamais sofreriam!

Elas teriam zero problemas de aprendizagem ou de comportamento na escola. Dá para imaginar a angústia cada vez que a orientadora queria “discutir a relação”?

Aliás, comportamento era um capítulo inteiro de cenas que jamais aconteceriam e que, no entanto, assisti de camarote, com outros espectadores, é claro, e nas quais reagi de formas diversas. Algumas reações, por sua vez, também supus que eu jamais teria. Enfim, não só eu não poderia mais morrer como, em algum lugar, supus que elas não poderiam de fato viver, pois a vida que planejava para elas, só existe, se tanto, em útero.

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