Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu machismo

Uma mulher não pode vacilar

A difícil tarefa de reconhecer o lugar das mulheres no mundo

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O excesso de didatismo não chega a comprometer o curta-metragem “Two Distant Strangers” (2020) de Travon Free e Martin Desmond Roe, concorrente ao Oscar 2021. Talvez porque nunca seja demais denunciar a naturalização da violência. O fato é que um corpo negro masculino é alvo certeiro de uma lógica racial indiferente ao comportamento de quem o habita. Um sem-saída que o filme explicita, enquanto lhe faz resistência.

Se o racismo foi ficando cada vez mais claro ao longo dos últimos anos para toda a sociedade isso se deveu a um longo processo de conscientização e não à violência em si.

Quando a carga afetiva, o mal-estar, o sofrimento encontram um lugar de nomeação, eles passam ao reconhecimento. Ao encontrarmos um nome para o sofrimento podemos partilhá-lo com outros sujeitos: racismo estrutural, feminicídio, violência obstétrica. Mais do que criar palavras para descrever o que se vive, está em jogo a própria experiência, ou seja, dar nome “cria” o acontecimento.

Jovem negro em frente a policial branco
'Two Distant Strangers', de Travon Free e Martin Desmond - Reprodução/YouTube

Alguém diz “você está apaixonado!” e toda aquela palpitação, falta de ar, constrangimento difuso na presença da pessoa se realiza em uma palavra e, se houver lastro, o amor se faz.

A evidência racial salta aos olhos revelando o caráter ultrajante da injustiça, mas o mesmo não se pode dizer da condição da mulher.

Mulheres negras ou pardas têm mais chances de reconhecer seu lugar no intrincado jogo das relações de poder e subalternidade entre humanos, mas isso se dá mais pelo lado da questão racial do que de gênero, cuja naturalização é mais insidiosa.

Em “Família Inter-Raciais: Tensões entre cor e amor” (Edufba, 2018) a psicóloga Lia Vainer Schucman, estudiosa das questões da branquitude, mostra como a valorização de traços fenotípicos associados aos brancos é escancarada dentro das famílias. É no seio das relações familiares que injustiças raciais e de gênero são reproduzidas geração após geração, ali mesmo onde aprendemos a amar e sermos amados.

Para a criança, perceber-se em desvantagem por ser mulher pode ser um pouco mais intrincado na medida em que a valorização cultural dos atributos femininos não encontra paralelo na desvalorização dos atributos ligados à negritude.

Seduzida pelo canto da sereia na forma de elogios —e autoelogios— à sua capacidade de cuidar dos outros, de se dedicar à família, de ser esteio afetivo dos filhos, de ser atraente, a mulher vacila na hora de reivindicar um lugar equânime ao lado do homem.

Se a luta contra o racismo e contra o machismo é tida como mimimi, quando se trata da questão da mulher a acusação é de egoísmo e falta de amor.

Se é fato que “quem ama cuida”, a mulher que não quer cuidar da casa e dos filhos sozinha não ama o suficiente. A mesma lógica não se aplica aos homens, para quem cuidar tem se reduzido a prover financeiramente, coisa que suas companheiras também fazem, diga-se de passagem.

Em uma sociedade que só funciona à base da exploração de uns pelos outros, é fundamental manter claro e separado quem são os “uns” de quem são os “outros”.

Se o homem negro é tido como potencialmente violento —em uma flagrante inversão da realidade—, a mulher, tida como dócil e amável, será tratada com veneração.

Até que ela se atreva a dizer não às demandas dos outros e até que ela reivindique o lugar de sujeito. Aí o jogo vira, principalmente, se for negra. A saída é rever o que entendemos por família e sociedade. A seguir pelo noticiário, trata-se de um show de horror.

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