Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu maternidade talibã

Para entregar seu filho

A todos os pais e mães salomônicos

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Basta um olhar mais demorado para o rótulo de um produto no supermercado e o fedelho aproveita para sumir de vista. São segundos —talvez minutos!— que servem de inspiração para roteiros de terror. Perder a criança em lugar público é um pesadelo conhecido de pais, mães e cuidadores. Os pequenos somem porque qualquer brilho na gôndola ao lado tem o poder de encantá-los, mas também porque, como dizia Winnicott, se escondem na esperança de serem procurados. Quem sentirá minha falta, quem virá me encontrar? Trata-se de uma aposta arriscada no amor e na infalibilidade dos adultos.

A vigilância ostensiva da infância deve funcionar como uma corrida de bastão na qual uma equipe de pessoas leais e confiáveis compartilham a tarefa de cuidar, sendo temerário que alguém o faça sozinho —fato infelizmente cada vez mais corriqueiro sob a alcunha de mãe solo ou famílias monoparentais.

Criança é erguida por cima de muro enquanto um militar a pega, em Cabul, no Afeganistão - Omar Haidari via Reuters

O duro de passar duas décadas seguindo os passos das crianças —onde estão, o que comem, o que vestem, com quem— é que leva um tempo para nos acostumarmos a deixar de fazê-lo. Razão de intermináveis brigas entre jovens e pais, cuja reprogramação de cuidados, agora na versão adulto, demora para ser atualizada. O amor exige a separação e a dor que a separação nos causa é responsável pela ambivalência amorosa. É o famoso “credo que delícia”, desejavelmente sofrido, de ver que eles têm um mundo para além de nós.

Mas há momentos nos quais o grande gesto amoroso é aquele no qual entregamos definitivamente a criança aos cuidados de outrem. Gesto imortalizado no julgamento de Salomão descrito na Bíblia, no qual duas mulheres disputam a maternidade de um bebê, em tempos pré exame de DNA. Para resolver a pendenga, o rei sugere que se corte a criança ao meio, ao que uma das mulheres recusa. O desfecho sabemos e nos lembra que os pais são aqueles capazes de abrir mão dos filhos em proveito deles. Não sem dor, não sem dúvidas.

Outras vezes temos a ingerência do Estado sobre pais e mães considerados incapazes de assumir a parentalidade, como em caso recente em Florianópolis, na qual uma parturiente foi separada de seu recém-nascido na hora do parto e impedida de amamentá-lo. Caso que vem sendo debatido por órgãos de Justiça pela violência e arbitrariedade de seu manejo. Ao invés de criar condições para que a parentalidade se dê, doa-se a criança para uma família mais abastada em um jogo perverso que instituições de defesa de famílias vulnerabilizadas e direitos reprodutivos têm denunciado incansavelmente. Os casos de destituição do poder familiar em famílias ricas, cujas misérias psíquicas se escondem atrás de muros e condomínios, são raros.

Os pesadelos nos quais nos vemos privados dos filhos à força, em razão de circunstâncias que nos escapam, é frequente em mulheres lidando com a separação do parto, mas obviamente não lhes são exclusivos. Existem separações desejáveis, constituintes, necessárias, nas quais dor e alívio comungam. Mas existem as terríveis, injustas, cujo sofrimento é tão lancinante que é impossível descrever.

Nesta semana, jornais do mundo estamparam a foto de um bebê sendo alçado aos braços de um soldado para escapar do Talibã. Imagem que, junto a corpos caindo de aviões, tiros contra manifestantes e mulheres escorraçadas, nos dão medo e vergonha da humanidade.

É conhecido dos psicanalistas o silêncio de imigrantes que fugiram de situações de terror. Ele revela os limites da linguagem em sua tentativa de dar conta do inominável do horror.

O silêncio dos espectadores, o nosso, não tem desculpas.

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