Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

De que vale ter filhos?

A parentalidade é das mais paradoxais ocupações humanas

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Era uma vez, entre os séculos 17 e 18, na distante Europa, um lugar no qual os adultos preferiam cuidar dos próprios interesses a cuidar das infindáveis demandas de bebês e crianças. Não que não houvesse amor —condição básica para a sobrevivência de humanos—, mas nasciam crianças demais e a ideia era que elas sobrevivessem por conta própria.

E a vida seguia, com filhos sendo entregues, por vezes, antes mesmo do batizado, aos cuidados de terceiros —as famosas mães mercenárias, que recebiam para amamentar e cuidar. A criança voltava para casa anos depois —ou não, estropiada, sem que se soubesse com certeza se era o filho outrora entregue.
O primogênito costumava ser poupado de destino tão funesto para levar nome, lavoura ou fortuna da família adiante.

Mas eis que o contingente de crianças abandonadas, delinquentes ou incapacitadas que sobreviviam a tanta negligência foi gerando um problema social tamanho, que se tornou imprescindível dar um jeito na coisa.

Pais estão se dedicando mais aos filhos durante a pandemia - Rivaldo Gomes/Folhapress

A solução todos conhecem, foi cantada em verso e prosa por historiadores como Ariés, Donzelot, Badinter, Postman, Federici. As mulheres foram a resposta mais econômica e óbvia para o problemão de quem cuidaria das novas gerações.

Dois séculos de pregação sobre o “instinto materno”, “sagrado materno”, literatura sobre as qualidades superiores das mães e psicologia das competências maternas foram necessários para que elas trocassem sua liberdade pela incumbência compulsória e exclusiva de cuidar dos filhos.

Daí para frente o caldo só engrossou e o que foi invenção humana para um problema social passou a ser considerado e propagandeado como “natureza feminina”, cujos desvios —não querer filhos, por exemplo —seriam patologias.

A pílula anticoncepcional, a ocupação dos espaços públicos e a conquista da independência financeira feminina nos trazem num pulo direto para os dias atuais.

A discussão sobre quem deve “embalar Mateus” é urgente, e a pandemia só fez aumentar o jogo da batata quente. Quem cuida/cuidará das crianças?

Nossa sociedade vive a curiosa situação na qual inúmeras pessoas correm atrás de ter filhos —estão aí as clínicas de reprodução assistida que não nos deixam mentir—, ao mesmo tempo em que deixam órfãs crianças surrupiadas de famílias pobres e socialmente vulneráveis.

Na tentativa de dourar a pílula, criam-se mitos compensatórios para a árdua tarefa, como a profunda amizade entre pais e filhos e o sagrado prazer de cuidar dos pequenos.

O isolamento deu a medida exata desse prazer, com famílias sonhando com o dia em que a prole terá autonomia financeira e sairá de casa.

A parentalidade é das mais paradoxais ocupações humanas e sua satisfação é inversamente proporcional às fantasias contemporâneas criadas em torno dela.

Para começar, não temos filhos, cuidamos de filhos. Tarefa que concorre com nosso estilo de vida atual, impossível de ser encampada sem ajuda coletiva.

Na melhor das hipóteses, o filho sonha com autonomia e distância dos pais, ainda que seja capaz de gratidão e amor pelos anos de cuidado.

Responsabilidade monumental, dedicação por décadas e preocupação eterna serão compensadas, com sorte, pela criação de um sujeito desejante, que anseia por viver uma vida sustentável a uma distância razoável de você. E antifascista, claro.

Mais do que isso é delírio de consumo, fadado a enormes decepções, usado para culpabilizar adultos desavisados.

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