Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Lygia Fagundes Telles e a sombra do etarismo

Escritora afirmava ter nascido em 1923 em vez de 1918 como consta em documentos acessados pela Folha

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Se o adjetivo gordo deixou de ser pejorativo para ser alçado a uma qualidade entre outras, o mesmo não se pode dizer de velho.

Idoso, então, só é aceitável para se estacionar em lugar prioritário ou pagar meia-entrada. Mesmo assim, há quem decline do direito em prol da discrição.

Idosa e velha têm um tom ainda mais nefasto em função do gênero feminino.

A escritora Lygia Fagundes Telles
A escritora Lygia Fagundes Telles - Fabio Braga/Folhapress

Vale relembrar que o filósofo Paul Preciado avalia em anos o valor que o homem e a mulher passam a ter quando voltam ao mercado amoroso-sexual depois do divórcio com filhos. Para cada filho, cujos cuidados recairão majoritariamente sobre a mulher, ela deve acrescer alguns anos a mais do que o homem nas mesmas circunstâncias. A lógica só se modifica quando as mulheres se voltam para o mundo lésbico, no qual as senhoras permanecem em alta. Entre homens gays, no entanto, é comum a queixa de que o envelhecimento é visto de forma impiedosa.

Segundo reportagem da Folha, Lygia Fagundes Telles teria driblado 5 anos de sua biografia, relatando ter nascido em 1923 em vez de 1918 como consta em documentos acessados pela reportagem. É comovente que uma mulher considerada imortal pela grandiosidade de sua obra sentisse a necessidade de alterar a própria idade. Embora não possamos jamais saber suas razões, não seria de se estranhar que temesse que o peso dos números afetasse o julgamento sobre ela.

Se você diz que tem 60 anos, a resposta esperada é "nossa, nem parece". O que nos obriga a completar a frase com: "nem parece uma velha de 60 anos". Como a linguagem é o que dá acesso aos fatos, o número gera um segundo olhar em busca das marcas que o corroborem, escrupulosamente escondidas por ginástica, roupas, cremes, maquiagens, intervenções e cirurgias. Onde pairava a possível atração, passa a valer o escrutínio numérico da idade, cravando expectativas que vão do: "nem parece" ao "está acabada".

Em uma época em que a obsolescência programada é o motor do consumo e da lógica das relações, nada mais coerente do que imaginar a velhice como um demérito, quase um desvio de caráter. Que a crítica seja implacável com as mulheres se justifica pela sua redução aos significantes sexual e reprodutivo, inversamente proporcionais à passagem dos anos. Marieta Severo agitou a cabeleira branca para lembrar aos jovens que o espelho não lhes dará nada além de miragens e que a possibilidade de manter-se lúcido e atuante é uma razão pela qual vale a pena continuar. A força de suas palavras não deixa dúvida sobre o vigor de Severo.

Minha mãe, do alto de seus quase 95 anos, me diz indignada: "o médico me indicou usar um remédio para o olho pelo resto da minha vida!", reforçando com o movimento das mãos que se trataria de décadas e décadas. Não duvido. Ela faz parte do grupo das idosas, cuja inteligência e memória permanecem intactas, assistindo aos rateios do corpo com espanto e inconformismo.

Vivemos mais do que os homens, mas, entre mulheres, as negras vivem muito menos do que as brancas. Fato que fica escancarado diante das filas de vacinação contra Covid que sempre começam com os nonagenários. A maioria é escandalosamente branca, pois a longevidade depende de acesso à saúde, à moradia, à aposentadoria e à segurança de qualidade.

Vida longa a todas as mulheres, as vaidosas e as nem tanto, as que alardeiam suas idades e as que a escondem, enfim, as que fazem o que bem entenderem com os limões da contemporaneidade.

Para aquelas que têm o privilégio de envelhecer no país do absoluto descaso com o idoso –principalmente negro–, que o façam como puderem e quiserem.

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