Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Álbum de figurinhas

Troca de cards exemplifica a diferença entre os interesses das grandes empresas e as relações que nos manterão vivos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A Fifa é uma máquina de fazer dinheiro e, através dele, impor seus interesses. Faz da Copa do Mundo de Futebol um evento de marketing sem nenhum compromisso com os valores do esporte. O "padrão Fifa" é de uma desfaçatez que leva governos a investirem o que não têm onde não deveriam. Nada disso, no entanto, fala da experiência do torcedor comum diante do acontecimento quadrienal.

O futebol foi das primeiras coisas nas quais o brasileiro se viu dignamente representado no exterior. O nome do país, a bandeira, o hino e a camisa canarinho nos redimiam da xenofobia e resgatavam parte de nossa autoestima.

O "complexo de vira-lata" brasileiro, fruto da negação de nossa miscigenação violentamente imposta, faz com que atribuamos pedigree a alguns tipos humanos. Fantasia compartilhada por Mauricio Macri, que afirmou em recente entrevista que os alemães devem ganhar a competição por serem uma raça superior.

Colecionadores trocam figurinhas do álbum da Copa em empresa em São Paulo - Rubens Cavallari - 30.ago.2022/Folhapress

Com essa ideia lapidar, o ex-presidente argentino atesta sua própria pequenez, não apenas por ser um imbecil afeito a teorias racistas. O faz também por fingir ignorar que a lista dos maiores jogadores e jogadoras de futebol de todos os tempos é exemplar da diversidade fenotípica que a pífia diferença de 1% no genoma humano é capaz de produzir.

Se há algo de digno na seleção alemã certamente não diz respeito à quimera racial, mas ao legado que deixou no Brasil, quando aqui esteve na Copa de 2014. Ao se relacionar com a comunidade de Santa Cruz Cabrália, onde treinava, atestou a única forma de se medir a grandeza humana: seu pendor para a solidariedade. Deixou por lá investimentos e saudades.

Na Copa, a rivalidade entre times conterrâneos é suspensa para que possamos torcer como um só povo. Se abstrairmos a xaropada patriótica, que só serve de desculpa para xenofobia, violência e guerra, veremos que torcer pela seleção é a versão civilizada do laço que deveria unir uma nação.

Longe das fronteiras armadas e hostis, a ideia de pátria que ainda pode interessar à humanidade —sempre em vias de se autodestruir— é a da nação que se constitui pela preservação da memória comum de uma história compartilhada. Por meio da língua, dos mitos —precisamos resgatar do limbo essa palavra— e dos costumes, formamos um tecido histórico que nos une e irmana. A partir daí, podemos circular entre outros povos com curiosidade e respeito, num intercâmbio para crescimento mútuo.

A troca de figurinhas do álbum da Copa é outro exemplo da diferença entre os interesses das grandes corporações e as relações que nos manterão vivos. Enquanto a empresa Panini ganha bilhões vendendo suas figurinhas —inacessíveis para a maioria da população mundial—, o mercado de troca delas se revela bem mais interessante.

Um amigo inglês, radicado no Brasil e torcedor roxo do Leicester, conta que, aos fins de semana, o jogo de bafo e as trocas de cards se dão em algumas praças com pessoas de todas as idades, cores, gêneros e classes sociais. Uma mãe me lembra que basta as crianças saírem de casa com o maço e passam a ser abordadas e abordar gente de todas as idades. Finalmente se desligam das redes para interagir presencialmente.

Não sabemos ainda a extensão do trauma social que a exploração criminosa de nossas diferenças políticas deixou, nem o quanto isso afetou nossa capacidade de torcer juntos pela nação irmanamente.

Tendo vivido 14 Copas, que se confundem com os piores e com os melhores momentos da minha vida e da vida do país, torço para que voltemos a trocar figurinhas. Se conseguirmos, o Brasil terá vencido o maior de todos os seus desafios: encarar seu passado e se fazer digno de um futuro.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.