Tenho várias reservas a séries com temas apocalípticos que atualmente infestam a indústria cinematográfica. Como toda indústria, seus produtos atendem a demandas do mercado que revelam e moldam nossos interesses. O prazer de ver o lugar onde se mora em ruínas, tão frequente nessas produções, demonstram nossa profunda ambivalência pelo que nós mesmos construímos. A depender das ficções que criamos, fica claro quem, na eterna disputa entre Thanatos e Eros, está ganhando.
Ao assistir "The Last of Us", tive a grata surpresa de descobrir que as cenas nas quais seres humanos infectados por fungos não são o centro da história. Sempre patéticos, pouco criativos e exagerados, esses personagens poderiam ser substituídos, sem grande perda para o enredo, por qualquer outro factoide que justificasse o desmantelamento da sociedade mundial.
Seja a falta de água, o aquecimento global, o esgotamento dos recursos naturais, "The Last of Us" é muito mais sobre o salve-se quem puder previsto para quando tudo começar a faltar para todos. Os cenários distópicos da série se passam em cidades hoje abastadas, mas não são diferentes de outros nos quais a penúria é uma realidade desde sempre. Na série desapareceram os oásis de opulência e ostentação que ainda existem. Daí o calafrio de assistir a um desfecho bem plausível para a destrutividade da sociedade moderna. Não sobra nada para ninguém.
A cada episódio, os dois heróis, o mercenário bonitão (Pedro Pascal) e a adolescente órfã (Bella Ramsey), encontram as diferentes soluções que a humanidade dá para as situações nas quais a sobrevivência de cada um depende do equilíbrio de forças dentro do grupo, a solução militar, fanatico-religiosa, isolacionista, científica… Cada uma desastrosa a seu jeito, menos a comunitária, claro, que vale uma das boas piadas da série. Vale a pena encarar a escatologia para aproveitar um roteiro excepcional, que evita subestimar o espectador.
Mas o que mais chama a atenção em "The Last of Us" é a construção da personagem Ellie, super bem interpretada por Bella Ramsey. Ali se concentra uma das questões fundamentais da nossa sociedade, aquela que diz respeito às novas gerações.
Ellie tem 13 anos e nunca soube o que é infância. Capaz de roubar, destruir e matar como um adulto mercenário, ela nos remete às crianças-soldados que existem pelo mundo hoje. Lembremos que a infância, essa criação do século 18 que visava preparar as crianças para o mundo adulto burguês, nunca contemplou todas. Ela não é a única, muitos grupos respeitam as crianças sem que tenham para elas o mesmo projeto de infância ocidental, pois nem todo cuidado e proteção oferecidos a elas visam transformá-las em empreendedores ou CEOs. Crianças indígenas, por exemplo, têm um outro modelo de infância a lhes servir de proteção e orientação.
Ellie, que, como muitas de sua idade, testemunhou e participou do pior que o humano é capaz, não deixa de ser, no entanto, uma criança. Uma criança sem direito à infância, mas, ainda sim, inexperiente e emocionalmente frágil. É nesse contraste que a personagem se agiganta, revelando a necessidade de um adulto a lhe servir de fonte de identificação e confiança. Se queremos que Eros tenha alguma chance diante da epidemia de humanos acéfalos devoradores de gente que se intensifica com as redes sociais, é preciso repensar o que queremos transmitir para a próxima geração.
Certamente, adultos mercenários não são a melhor opção. Mais do que salvar a humanidade do efeito dos fungos devoradores de gente, há que se pensar como salvá-la de si mesma.
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