Freud começa sua clínica junto a Joseph Breuer descobrindo que rememorar experiências traumáticas promove efeitos terapêuticos. Estamos em 1893, momento no qual se busca entender as condições da cura do adoecimento psíquico.
A escuta atenta e sem julgamentos e o incentivo —verdadeira pressão— para falar tudo que viesse à cabeça na sequência em que surgia culminavam em uma lembrança carregada de afeto.
O método catártico, como ficou conhecido, é centenário e decorre da desistência de Freud do uso da hipnose, passagem consagrada em seus "Estudos Sobre a Histeria". Hipnose e método catártico, embora tenham sido superados, formam a base de descobertas fundamentais da psicanálise, como a transferência.
O reconhecimento de que o paciente transfere e atualiza para a pessoa do médico a relação com as principais figuras de sua vida foi crucial para o entendimento e o manejo do que se passa no tratamento. Livros e artigos continuam sendo produzidos sobre esse tema fascinante.
É na esteira das descobertas de Freud e outros grandes pesquisadores da psique humana que vemos surgirem "inovações" terapêuticas aqui e acolá, ora como mau uso, ora como reciclagem de descartes de teorias. Elas costumam ser apresentadas ao leigo com expressões de "Eureka, agora a cura será fácil, rápida e garantida!".
Figuras de suposta autoridade coagindo usuários do serviço de Justiça a participarem de sessões de constelação familiar pagas pelo contribuinte são um exemplo sem precedentes dos abusos nesta área. O episódio sobre o tema no podcast O Assunto é uma aula sobre como se dá o mau uso de técnicas que não têm compromisso com a ciência e com a ética. Ali vemos a manipulação criminosa da transferência e da catarse para impor valores ultraconservadores na goela do usuário desavisado.
Família acima de tudo, mulher submissa ao homem, a inegociável hierarquia de gerações, pertencimento ao grupo de origem sob quaisquer condições, não importando o tamanho da violência envolvida no caso: na contramão da ética psicanalítica mais básica, o "constelador" parte de suas próprias convicções —conscientes ou não— para impô-las ao outro.
Interpretações que são fruto de valores inconscientes não elaborados —uma forma de atuação— reaparecem nas cenas montadas como se fossem a verdade última tirada de um saber superior e inefável. (Jacob Levy Moreno, psiquiatra romeno que inventou o psicodrama nos anos 1920, está revirando no túmulo diante do uso nefasto de suas técnicas.)
Vemos a brecha através da qual, mais uma vez, a laicidade do Estado é atacada por um programa da ultradireita que visa impor a manutenção da desigualdade, dos privilégios e da violência em nome do "bem".
Os efeitos histriônicos dessas intervenções são altamente questionáveis e afetam o resultado final dos julgamentos. O aumento do número de conciliações nem sempre significa aumento de justiça, uma vez que escolhas baseadas em afetos inconscientes não nomeados tendem a repetir padrões de alienação e violência.
O familiar violento ou abusador volta para o seio da família que não deve rechaçá-lo (lei do pertencimento); a vítima deve perdoá-lo (lei da hierarquia); a família disfuncional deve permanecer (família acima de tudo) e assim seguimos reiterando o pior.
Sem a prática de uma teoria em permanente revisão que tenha a ética como base, qualquer intervenção leva à barbárie.
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