Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

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Vinicius Torres Freire

O luto e a conversa política no primeiro Natal pós-pandemia

País vai se adaptar ao ódio e à mentira lunática ou vai mudar de conversa política?

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É bem possível que o Brasil tenha reuniões de Natal e comemorações de fim de ano. Falar em “festas” talvez seja ambição exagerada ou insensibilidade. Haverá muito luto familiar ou a memória dos talvez quase 600 mil brasileiros que terão partido.

Em um trabalho recente, André Dahmer ilustra um calendário das nossas perdas. No primeiro quadrinho de três “fotos” de família, aparecem em 2019 um casal de avós, um casal mais novo e uma criança. Em 2020, os avós se foram. Em 2021, restam a mulher e seu filho. Até o final do ano, uma de cada cem pessoas de mais de 70 anos terá morrido; o risco bruto de um homem morrer é 27% maior que o de uma mulher.

As histórias de rusgas em reuniões familiares da época de “festas” tornaram-se um folclore nacional mais deprimente desde que a desavença política e cultural derivou para o ódio. Imaginar como vai se desenhar essa caricatura familiar da vida do país no Natal de 2021 é também uma especulação sobre o que será do luto e da conversa política.

Os Estados Unidos lembram do “grande Natal” de 1945, depois do fim da Segunda Guerra. Milhões de americanos combateram, centenas de milhares morreram, outros viveram anos de racionamento estrito. A celebração de 1945 teve raros feriados, euforia e um tom de união nacional restante de um país que se engajou inteiro em conflito de vida e morte.

Nós estamos em uma espécie de guerra política incivil, conflito muito além das linhas costumeiras das nossas divisões cruéis. Nos dias que correm, a maior parte do país teme a morte pelo vírus, outros nem tanto ou nada. Parte tenta estabelecer a culpa legal de quem agravou a tragédia, outros tentam ampliá-la, embalados por mentiras lunáticas e sectárias do presidente do que resta da República.

Jair Bolsonaro volta a desacreditar as vacinas ao mesmo tempo em que se gaba indevidamente de um progresso exagerado da vacinação. Faz campanha contra máscaras e voltou a mentir sobre o tamanho do morticínio. Quer erradicar qualquer possibilidade de diálogo racional e enraizar o ódio.

As condições reais da vida vão mudar até o final do ano, porém (se não tivermos sucesso na nossa tentativa de cevar uma variante assassina do vírus). Ao ritmo de junho, todos os adultos terão sido vacinados em outubro —sem frustração maior do cronograma oficial, antes disso. É possível até dar duas doses para todo mundo até dezembro.

A vida material vai melhorar para muitos, embora o povo comum deva ter um Natal entre magro e faminto. Um quilo de carne custa 10% do salário mínimo em São Paulo.

Entre o alívio e o luto, entre a pobreza de muitos e a melhoria de vida de metade do país, como vamos lembrar da catástrofe e pensar no futuro ou em 2022? O alívio talvez possa provocar uma normalização duradoura da mentira, da agressão à humanidade e do ódio, ao qual temos nos adaptado mais e mais.

Uma alternativa é justamente pensar no futuro, o que inclui dizer “nunca mais” para a aceitação da morte gratuita.

Mas não temos visão alguma de futuro, talvez apenas a ideia de “retorno” a “bons anos”, uma ilusão grave, pois os anos nem eram assim bons e nem mais existe o país que imaginávamos conhecer faz meia década. Na política ou nas ideias, 2023 em diante é um acirramento sombrio do que estamos vendo ou névoa escura, apenas um “depois” sem rosto. Até agora, não temos plano ou sugestão de conversa para seguir a vida, viver o luto, enterrar os mortos e cuidar dos tantos vivos feridos. Em termos vulgares, não temos um programa.​

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