Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

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Milei paga as contas da Argentina com o couro do povo

País tem superávit com arrocho feroz, que não vai durar sem plano econômico e político

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Pela primeira vez, desde 2011, o governo da Argentina conseguiu gastar menos do que arrecada e ainda pagar a conta de juros em um bimestre. Teve superávit primário e nominal.

Javier Milei conseguiu tal façanha provisória porque, grosso modo, arrochou de modo feroz o valor de aposentadorias e pensões, de salários de servidores e de benefícios sociais.

Em relação ao primeiro bimestre de 2023, a despesa com Previdência caiu 31% em termos reais —isto é, além da inflação. O gasto com servidores, quase 12%. Somadas as despesas com Previdência (aposentadorias, pensões) e com benefícios sociais (como "bolsas" para famílias), a baixa foi de 24%. Cerca de 60% da redução de despesa veio daí. É o que se pode calcular das estatísticas fiscais até fevereiro.

O presidente da Argentina, Javier Milei - Agustin Marcarian - 18.mar.2024/Reuters

Note-se ainda que a receita de impostos na Argentina é maior no primeiro semestre, por causa da agricultura. No segundo semestre, vai ser mais difícil.

Outro corte de despesas veio do congelamento do gasto com obras públicas e de cortes de transferências para as províncias (estados). Parte menor veio da redução dos de fato disparatados subsídios. A taxa básica real de juros é negativa. É insustentável.

Se um povo qualquer aceita o sufoco por tempo bastante ou é também reprimido com violência estatal, fica mais fácil de fazer o que se chama de "ajuste fiscal", embora nem mesmo repressão seja suficiente.

A inflação para o consumidor está em 276% ao ano. Depois de um tombaço em 2023, a média dos salários continua derretendo, com baixa anual de uns 20% em termos reais. O arrocho fiscal e uma recessão feia devem ajudar a baixar um pouco a carestia até o final do ano.

Isso se a taxa de câmbio continuar relativamente comportada. Do final do governo peronista até agora, o dólar ficou uns 124% mais caro. A inflação somada de dezembro a fevereiro foi de 71%.

Se ficar pela casa de 10% ao mês até maio, será então necessária uma outra desvalorização do peso a fim de incentivar exportações e conter importações —o país precisa de dólares.

As exportações sobem por causa do agro, que ressuscitou da seca mortífera, e do setor de energia; as importações são contidas de resto por causa da recessão horrenda.

O ajuste argentino por ora não passa de um arrocho. Algum arrocho haveria, de qualquer modo. Por ora, o ajuste de Milei depende da disposição dos inocentes de padecerem calados.

Para fazer um acerto duradouro ("sustentável"), é preciso arrumar fontes de financiamento estáveis (impostos e empréstimos de um mercado de dívida pública a custo tolerável). Fazer "reformas" (administrativa, previdenciária). Acabar com os controles de capitais (de entrada e saída de dólares) e ajeitar a economia de modo que o país volte a crescer de modo regular. Etc.

Nada disso aparece no horizonte. Menos ainda se sabe o que fazer do povo arrebentado, se alguém se importa. Ainda não há plano organizado de estabilização econômica ou meios políticos de aprovar e implementar um tal programa.

Milei deu tapas na cara da centro-direita que aceitaria negociar um plano duro de ajuste e reforma econômica, botou fogo no parquinho da Casa Rosada e vai às redes discutir coisas como tamanho de canis.

Tenta evitar que seu decretaço de refundação nacional, uma mega medida provisória, caia de vez (já foi derrubado no Senado, mas apenas caindo na Câmara deixa de valer). Por risco de derrota, retirou do Congresso sua lei geral de reforma ("omnibus").

Agora, quer firmar um "pacto nacional" em maio, quando faria concessões a fim de aprovar a "omnibus". O pacto é basicamente uma lista de princípios de redução do Estado. Anos de desespero vão fazer com que o povo aguente o arrocho calado, na esperança de melhora?

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