'Turismo de compras' de brasileiros na Argentina despenca após Milei

Filas na fronteira diminuem, e mercados e postos de gasolina se esvaziam após disparada de preços no país vizinho

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Oberá, Alba Posse (Argentina) e Porto Mauá (RS)

"Meu Deus do céu, o fernet está R$ 42", diz o gaúcho Rodinei Luís, 51, apontando para a clássica bebida alcoólica argentina enquanto estaciona o carrinho em frente ao caixa do supermercado. "Antes estava R$ 17, estão o dobro as coisas", se surpreende, levando as mãos à carteira.

Rodinei está no atacadão El Cóndor, queridinho dos brasileiros que atravessam a fronteira do rio Uruguai de balsa para aproveitar os baixos preços do país vizinho, na cidade nortenha de Oberá. Ou atravessavam.

Brasileiro passa pela fronteira de Porto Mauá (RS) carregando vinhos comprados em Alba Posse, na Argentina - Victor Paniagua/Folhapress

A partir de dezembro, quando Javier Milei assumiu a Presidência e deu um giro na política econômica, os "bate-voltas" para compras despencaram. Agora, alguns argentinos até começam a fazer o movimento contrário, cruzando para o Brasil para fugir das próprias gôndolas, algo que não se via havia anos.

O ônibus da agência de viagens de Rodinei, que antes levava cerca de 80 pessoas por mês partindo de Santa Rosa (RS), agora transporta apenas um pequeno grupo que foi pescar e resolveu parar para levar alguns itens que ainda valem a pena. "A procura caiu a zero, nossa última excursão foi em 12 de dezembro", diz ele.

Em 2023, as travessias terrestres e fluviais de menos de um dia à Argentina dispararam, com a inflação do país em constante alta e o peso cada vez mais desvalorizado em relação ao dólar e ao real durante a gestão do peronista Alberto Fernández. Foram 2,4 milhões de viagens, contra 1,5 milhão no ano anterior.

Sulistas que vivem nos limites do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná eram atraídos pelo preço e qualidade principalmente de produtos de limpeza, higiene e alimentos como farinha.

"O sabão em pó e o detergente deles são muito melhores que os nossos", diz o autônomo Júlio César Santos, 51, outro dos poucos brasileiros em frente ao supermercado, abastecendo o porta-malas com dezenas de sacolas amarelas e um cooler abarrotado de gelo para os iogurtes.

Frequentemente, eles acompanhavam as promoções nas redes sociais do atacadão, rachavam a gasolina com amigos ou parentes e cruzavam a fronteira para "fazer rancho", as compras do mês. Um desodorante podia custar R$ 3, e o combustível com preços controlados gerava filas nos postos.

Mas isso mudou depois que Milei chegou, acabou com os congelamentos e promoveu uma forte desvalorização da moeda local (que antes tinha um valor irreal frente ao dólar), em busca de seus principais objetivos: corrigir os preços, equilibrar as contas públicas, parar de emitir dinheiro e conter a inflação histórica no país.

Neste fevereiro, ele comemorou seu segundo mês consecutivo de superávit. Por outro lado, viu a pobreza subir a 57% da população, já que as medidas fizeram os preços explodirem muito acima dos salários. O dólar paralelo "blue", usado pelos turistas, também não acompanhou a alta, portanto o dinheiro estrangeiro passou a valer menos.

Nem o vinho escapou, apesar de ainda continuar mais vantajoso do que no Brasil. "Vivemos do brasileiro que entra para comprar, mas o movimento caiu uns 60%", conta Darío Sánchez, 39, gerente da adega que fica bem em frente à balsa de Alba Posse, do lado argentino da fronteira, na província de Missiones.

"Abrimos em fevereiro e o fluxo foi crescente durante todo o ano. Depois de 10 dezembro sofremos um impacto, em janeiro se estabilizou, e agora tivemos uma baixa de novo", conta ele em meio às estantes. Os vinhos que custavam em média 3 mil pesos (R$ 15 na cotação paralela atual) saltaram para 7 mil pesos (R$ 35).

O argentino Darío Sánchez, gerente de uma adega na cidade fronteiriça de Alba Posse, diz que movimento de brasileiros caiu significativamente com aumento dos preços - Victor Paniagua/Folhapress

O "turismo de compra" na fronteira depende muito do câmbio, por isso sua intensidade flutua. "Não é como no Paraguai que temos uma assimetria de preços estrutural. A diferença com o Brasil é cambial", explica Gerardo Beltrán, secretário da Confederação Argentina da Média Empresa (Came) que trabalha na região.

Ele tem uma visão mais extrema. Afirma que a entrada de brasileiros para comprar "acabou" e que isso é ainda mais visível em cidades argentinas com maior fluxo de mercadorias, como Bernardo Irigoyen, na fronteira seca com Santa Catarina, e Puerto Iguazú, na tríplice fronteira próxima às Cataratas do Iguaçu.

Nesses locais, diz, começou-se a ver algo que não era comum havia muito tempo: "Hoje os argentinos já estão cruzando para o Brasil para comprar alguns produtos de cesta básica e higiene pessoal. O fluxo se reverteu totalmente". Arroz, açúcar e azeite são alguns dos produtos cobiçados, mas o poder de compra e as quantidades levadas pelos argentinos ainda é menor.

Balsa atravessa o rio Uruguai, limite da fronteira entre as cidades de Porto Mauá (Brasil) e Alba Posse (Argentina) - Victor Paniagua/Folhapress

O que acontece com o Brasil também acontece com outros países limítrofes, como Uruguai, separado por uma barca de Buenos Aires; Chile, também de fácil acesso pela estrada que cruza a Cordilheira dos Andes; e Paraguai, onde uma das principais ligações é uma ponte entre os grandes municípios de Encarnación e Posadas.

Ali, por exemplo, as travessias para comprar gasolina do lado argentino eram tão frequentes que se desenvolveu um mercado ilegal de galões de 5 ou 20 litros. "Isso também terminou", diz Beltrán. Após as medidas de Milei, o preço dos combustíveis acumulou altas de mais de 80% e se emparelhou ao dos países vizinhos.

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