Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

Um certo tipo de surdez

Não haverá transformação social sem mudar a estrutura de nossa sensibilidade

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Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

A tese não deixa de ter seu sentido, para além da veracidade ou não do fato. Discute-se atualmente se Beethoven teria realmente sido acometido pela surdez.

Pois talvez sua surdez fosse simulada, fosse a forma de uma recusa ao tempo das falas que não têm mais força de expressão, dos sons que desconhecem sua própria sublimidade.

Há certos indícios que permitiriam sustentar essa hipótese. Eles estão lá, no mais recente livro de Flo Menezes: "Riscos sobre Música - Ensaios - Repetições - Provas" (ed. Unesp, ebook gratuito).

Trata-se de uma coletânea de ensaios, rascunhos e análises de um dos mais representativos compositores brasileiros da atualidade. 

Conhecido pela sua capacidade de aliar força especulativa a uma produção musical pioneira, que vai da eletroacústica até as formas mais tradicionais (quartetos de cordas, peças para pianos, óperas, entre outros), Menezes é compositor de forma rigorosa e refletida.

Alguém que soube o sentido de uma importante afirmação de Stockhausen: "Intuição é um nível mais alto de consciência, acima e além do mental". 

Ou seja, a construção musical que emerge do pensamento serial não desconhece a força do que se oferece como intuição, pois sabe que o compositor não é apenas um matemático mais elaborado. 

Ele é alguém capaz de encontrar a força dos conceitos nos gestos aparentemente mais naturais, alguém capaz de decompor os parâmetros naturais do som, suas distinções entre ritmo e altura, timbre e pulsação.

Por isso, a intuição não é uma doação espontânea, ela é o nível mais elevado da elaboração conceitual que caracterizaria a consciência.

Essa capacidade de romper a ilusão da naturalidade, quando é questão da produção musical, leva a um certo exílio que Flo Menezes acabou por encontrar figura nessa espécie de surdez simulada que atribui a Beethoven em seu novo livro. 

Como disse Pierre Boulez, há uma certa lentidão própria à nossa época, uma época que gosta de se ver como dotada de velocidade extrema. "Toca-se 'Erwartung' de Schönberg, obra composta em 1909, e 90 anos depois ela continua ainda sendo uma peça problemática", afirmou o compositor e maestro francês, em um balanço do século 20.

Podemos acrescentar mais 20 anos a essa conta. Essa lentidão —um dos pontos altos da reflexão de Menezes—, é politicamente construída.

Já Platão dizia que não se modifica as formas musicais sem que os alicerces da cidade sejam abalados. Tanto que em sua República ideal haveria uma censura a certos modos que não contribuiriam para a formação das virtudes necessárias aos cidadãos da pólis.

Ou seja, a relação entre música e moral aparecia como uma questão política maior. A produção musical deveria se submeter às formas de reprodução de formas de vida, pois seria por meio dela que, de maneira insidiosa, outras sensibilidades se constituiriam, outra percepção do tempo e do espaço emergiria, retirando assim a adesão social aos limites do atual.

A música deveria, pois, submeter-se a um imperativo moral que lhe é exterior, criando uma naturalidade que seria a forma mesma da perpetuação das formas de nossa sociedade.

Talvez nenhum outro compositor brasileiro atual tenha sentido de forma tão dramática e consciente esse problema político ligado à música quanto Flo Menezes. 

Pode-se mesmo dizer, de certa forma, que é dele que sua experiência musical é feita. Isso fica explícito em seus ensaios deste novo livro, em especial "Adorno e o Paradoxo da Música Radical" ou ainda "Transgresso e Intertensão".

Neles, o leitor pode encontrar uma articulação rica entre problemas do ofício da composição contemporânea, reflexões sobre a sociologia da música e discussões a respeito das possibilidades atuais das artes.

Do livro de Menezes parte a certeza de que nenhuma transformação social efetiva será feita sem uma transformação da estrutura de nossa sensibilidade e de nossos afetos. 

Nesse sentido, levando em conta como a sensibilidade no Ocidente se formou, não seria possível esquecer como a música sempre foi e continuará sendo a mais política das artes. Há de se perguntar o preço da surdez a tal certeza.

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