Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

Transformar a circulação

Cildo Meireles é exemplo de como a arte brasileira é animada pela inquietude

Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

"Cildo: Estudos, Espaços, Tempo" (ed. Ubu, 301 págs.) é o título do mais recente livro a respeito da obra de Cildo Meireles. Organizado por Diego Matos e Guilherme Wisnik, ele expõe, de forma rigorosa, a trajetória e o sistema de questões que animam essa que é uma das mais relevantes experiências artísticas do Brasil nos últimos 40 anos.

Composto não apenas pela apresentação das obras, mas por estudos do autor, que permitem visualizar seu processo de produção, e por um conjunto de ensaios escritos por Frederico Morais, Ronaldo Brito, Lisette Lagnado, Moacir dos Anjos, Sônia Salzstein, Suely Rolnik, entre outros, o livro se propõe a traçar um percurso.

Trata-se de escolher um conjunto de obras que, tomadas em relação, demonstram não apenas o eixo principal do trabalho de Cildo Meireles.

Elas mostram, principalmente, como a arte brasileira foi e continua sendo atravessada pela consciência da indissociabilidade entre instauração formal e transformação política.

Cildo Meireles é o caso mais explícito de como a arte brasileira (ou seu setor mais vivo e criativo) é animada pela inquietude da própria sociedade da qual faz parte.

O livro de Matos e Wisnik teve a astúcia de inquirir tal inquietude por meio dos processos de reinstauração do espaço e do tempo, tão presentes na obra de Meireles. A força da arte em decompor as formas da ordem expressas no controle do espaço e do tempo será sempre uma de suas mais claras expressões políticas.

Pois a ordem política é feita de fronteira, de definição de lugares que podem ou não ser ocupados, de limites, de separações, de circuitos, ou seja, de espaço. Ela ainda é feita de apagamento, de fluxos, de retorno, de mortos que parecem nunca passar, mais uma vez, de circuitos, ou seja, de tempo.

Cildo Meireles começou a ser artista enquanto vivia em Brasília. Para lá, se mudou em 1958, antes mesmo de a cidade ser inaugurada. E em que lugar senão Brasília ficava claro esse desejo, tão presente nos fantasmas da história brasileira, de reconfigurar o espaço como condição política de instauração? Não seria difícil encontrar algo desse desejo em obras de Meireles como "Espaço Virtual", "Arte Física", "Volumes Virtuais" ou, ainda, "Cruzeiro do Sul".

Mas, nesses casos, não é a monumentalidade da submissão do espaço à geometria que fala alto. Todas essas obras tratam de fazer algo outro. Trata-se de decompor as coordenadas do espaço, de criar problemas de escala (como na obra em que um minúsculo cubo de madeira é exposto em um salão vazio de 200 metros), de abrir fendas (como nos falsos cantos de sala que quebram a geometria euclidiana e funcional), de misturar o que estava dividido (como na caixa que guarda terra coletada nos municípios fronteiriços de São Paulo e do Rio de Janeiro) ou ainda de confundir cercas e espelhos, transparência e obstáculo (como em "Através", certamente uma das mais belas obras da arte contemporânea das últimas décadas).

Não seria possível compreender suas obras de explícita intervenção política —como a série "Inserções em Circuitos Ideológicos", na qual Cildo carimba notas de cruzeiro com a inscrição "quem matou Herzog?" ou aplica adesivos de como fazer um coquetel molotov em garrafas de Coca-Cola— sem inseri-las em uma consciência a respeito de como o poder expõe sua força ao criar espaço.

Ou seja, como ele cria espaços nos quais se define, de antemão, o que pode circular e como, o que pode ser dito e como.

Em uma de suas obras mais impressionantes, "Fontes", Cildo Meireles cria um espaço com 6.000 metros de carpinteiro alterados e pendurados no teto, mil relógios alterados fixados na parede e 500 mil algarismos pretos espalhados no chão. Vista do topo, a instalação tem a forma de uma dupla espiral, como as estrelas da Via Láctea.

Dificilmente encontraríamos expressão mais forte do desejo da arte em decompor as medidas do tempo e do espaço, liberando a estética de sua colonização por padrões prévios de medida. E quem não conta mais o tempo, quem não mede mais o espaço não pode mais ser comandado.

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