Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

Lama e tiros

Por que as inversões de sonhos em pesadelos são tão recorrentes no Brasil

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No Brasil, os sonhos de desenvolvimento e segurança produzem monstros. Sonha-se com o desenvolvimento pretensamente produzido por empresas internacionalmente conectadas ao capitalismo global e acorda-se com centenas de cadáveres boiando em lama tóxica.

Sonha-se com a mão forte de um governo duro contra o crime e acorda-se governado por grupos organicamente ligados a milicianos especializados em aterrorizar populações economicamente vulneráveis e esquecidas, além de assassinar desafetos.

Não é realmente difícil compreender por que essas inversões de sonhos em pesadelos são tão recorrentes por aqui. O crime hediondo produzido pela Vale serviu ao menos para evidenciar a rede de banditismo na qual o capitalismo nacional é assentado.

Os CEOs arautos da modernidade gerencial tecem relações incestuosas e corruptas com todos os níveis dos governos que, por sua vez, ignoram sistematicamente todos os alertas de setores da sociedade civil engajados nas causas ambientais.

Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

Isso ocorre enquanto os que tomaram de assalto o Palácio do Planalto preparavam o desmonte final da parca fiscalização que ainda existia para que, enfim, o que há de mais predatório no sistema produtivo capitalista pudesse ter diante de si uma avenida de devastação desimpedida.

Crimes como o praticado pela Vale não são feitos sem anos de preparo sistemático. Eles não são um ponto fora da curva, mas a expressão mais clara do que realmente é a "racionalidade gerencial" a que estamos submetidos. 

A seu favor está o Estado brasileiro: gerente de uma noção de progresso que é apenas outro nome para a defesa de executivos cujos ganhos se contam na casa de milhões anuais enquanto assassinam a população com as armas da negligência e da irresponsabilidade. 

Esses são os verdadeiros criminosos que destroem o país e contra eles você não encontrará ninguém no governo atual, apenas cúmplices.

Crimes como esses, não por acaso, ocorrem normalmente em países como Brasil, Bangladesh, Índia. Ou seja, a periferia da produção do capitalismo global mostra claramente o que é a totalidade do sistema. 

Relações predatórias e escravistas permanecem em meio a discursos de "responsabilidade social", "desenvolvimento sustentável", "consumo consciente" e outras palavras vazias que visam apenas esconder o que essa racionalidade econômica realmente é. Pois o cálculo já está feito: mesmo depois das quedas na Bolsa e das multas, a Vale ainda lucrará com o crime.

Nenhum de seus altos executivos irá para a cadeia. Em breve, teremos análises "isentas" e "racionais" falando que, apesar de tudo, a empresa é importante para o país e precisará continuar funcionando. 

Até que um dia você irá ligar a televisão e verá uma dessas peças publicitárias com fundo musical feérico e redentor com o slogan "a nova Vale mudou porque você também mudou", na qual o comprometimento social da empresa será louvado em meio a muito verde, árvores frondosas e crianças pobres felizes.

Essas pessoas, no entanto, trabalham sem ler poesia —e este é seu maior erro. Pois se eles lessem poesia, talvez descobrissem esses versos de Torquato Neto: "Leve um homem e um boi ao matadouro/ aquele que berrar é o homem/ mesmo que seja o boi". Eles acreditam ter diante de si uma população bovina e inerte, que se deixará afogar na lama e se submeter a milícias como se isso fosse uma fatalidade natural.

Mas eles sempre são pegos de surpresa quando a cólera popular explode. Só que quanto mais ela explode, mais difícil é fazê-la voltar ao ponto de partida. Para a grande massa da população, o capitalismo nacional é isso e nunca passará disso: lama e tiros.

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