Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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Vladimir Safatle

Uma questão filosófica

Seria fácil ridicularizar anti-intelectualistas, mas há algo que se tem de levar em conta

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Há uma certa ironia em ser obrigado a reconhecer que o desgoverno do sr. Jair Messias trouxe para o centro do debate nacional uma querela envolvendo a filosofia no Brasil.

O grupo de comando mais anti-intelectualista da história nacional deu vazão, entre outros, a uma certa rebelião que procura inverter os sinais desta área de reflexão aparentemente menor, deslocada e fechada sobre si mesma, a saber, a filosofia feita no Brasil.

Há um senhor autodesignado filósofo na posição de Rasputin dos trópicos. Um de seus diletos virou ministro das Alucinações Exteriores, outro é o novo ministro da Educação.

Este último trouxe a tiracolo vários de seus ex-alunos para ocupar cargos-chave na formulação das políticas educacionais, inaugurando uma prática nunca vista nem nos momentos mais descarados de nepotismo na República.

Seria fácil ridicularizá-los, mostrar a ausência completa de rigor de seus trabalhos, o misto de neotomismo requentado, liberalismo mal compreendido, muita paranoia e complotismo, nacionalismo modelo "pátria grande" e, em vários casos, vocabulário tipicamente fascista.

Ilustração
Marcelo Cipis/Folhapress

Muitos manuseiam as críticas à pretensa hegemonia ideológica nas universidades para tentar esconder a simples incompetência técnica da qual eles são expoentes.

Mas há de se reconhecer que, ao menos em um ponto, eles apontam para uma questão real. Seria interessante levá-la em conta para entender melhor o que está a acontecer.

A filosofia no Brasil se profissionalizou a partir dos anos 1930 por meio de uma certa política de tábula rasa. Aprendemos todos que antes havia no Brasil apenas um pensamento desfibrado e filosoficamente irrelevante, que aquilo que se chamava "filosofia brasileira" era algo que seria melhor esquecer.

Mesmo depois, aqueles que se viam como expoentes da filosofia brasileira eram compreendidos nos departamentos como representantes de um pensamento em falta de adequação mínima aos padrões de rigor exigidos pelos critérios das universidades relevantes no resto do mundo.

Mas o efeito colateral dessa querela foi compreender que não deveria haver filosofia brasileira, que qualquer um que se colocasse como tal era um impostor. Fomos ensinados a ser professores de filosofia, comentadores profissionais, mas ai daquele que se colocasse como "filósofo".

Nesse sentido, quando o sr. Olavo de Carvalho diz não haver filósofo no Brasil, é difícil não sentir uma certa ironia nisso tudo e lembrar que era exatamente isso que nossos professores nos ensinavam: que não era possível haver filósofos no Brasil, só bons professores de filosofia.

O resultado é que esses que eram ridicularizados por nós entenderam ao menos algo que nós não entendemos, a saber, que a filosofia é um setor fundamental da experiência sociocultural de certas sociedades, a nossa inclusa.

O interesse que a sociedade brasileira devotou a esse setor nessas últimas décadas não era apenas algo como uma procura desesperada de boas citações que poderiam fornecer uma camada de verniz cultural em um guarda-roupa de fundo falso.

Ela expressava o desejo de elaborar modelos de pensamento com força de intervenção, haja vista o fato de que boa parte dos intelectuais mais influentes da Nova República tenham sido filósofos.

Na verdade, em seu modelo intelectual, o Brasil (queira ou não) seguia países nos quais a filosofia desempenhou historicamente esse papel, como França e Alemanha.

No entanto, quem realizou essa tarefa aqui nesses últimos tempos não foram aqueles formados pelo sistema universitário brasileiro em seu funcionamento de excelência, mas os que em larga medida ficaram à margem.

Eles puderam, assim, mobilizar seu antiacademicismo em um momento no qual a sociedade brasileira descobria a força de suas demandas anti-institucionais.

Pois o modelo de reflexão e intervenção havia entrado em colapso nas universidades nacionais, salvo raras exceções.

Na verdade, ele entrara em colapso no mundo, mas em um país como o Brasil, que desde os anos 1950 havia se acostumado com a figura dos intelectuais públicos, isso era mais problemático.

Assim, a "filosofia brasileira" pôde abraçar sem complexos o bolsonarismo fascista, como vários de seus expoentes haviam feito no passado com o integralismo.

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