Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu internet

Quem tem medo do professor doutrinador?

O mérito da extrema direita foi extrair do medo e da raiva do brasileiro o combustível para sua boataria

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Fábulas são eficientes recursos pedagógicos. Fábulas infantis foram usadas desde sempre para que toda noite as crianças assimilem valores, representações e significados compartilhados em sua comunidade.

E tão cientes estamos de que se educa por meio de mitos, relatos e lendas mais do que por qualquer outro meio, que até os textos sagrados mais arcaicos, transmitidos oralmente ou por escrituras, são em grande parte coleções de histórias.

Há vários lugares-comuns nas histórias que contamos. Um desses lugares-comuns diz respeito aos personagens usados para se colocar os ouvintes exatamente na posição cognitiva e na disposição emocional que o narrador deseja.

O bicho-papão, por exemplo, representa o que nos assombra e deve ser temido, a condensação do mal. O sedutor —que, literalmente, nos desvia do caminho— é outro lugar-comum das fábulas moralizantes. Não por nos assombrar, mas, ao contrário, porque captura nosso desejo, como o lobo mau que desencaminhou a menina do chapeuzinho vermelho e a levou sorrateiramente à floresta sombria.

A política é também uma arte narrativa, pois depende da conquista de corações e mentes, e de histórias emocionantes e plausíveis que são o meio mais curto e eficiente para a realização dessa tarefa.

Novos movimentos políticos não se estabelecem sem capturar a imaginação de uma parte importante da sociedade, sem novas mitologias políticas que redesenhem valores e virtudes, sem uma nova épica.

Ilustração de Ariel Severino em preto e branco. A figura de um professor, com a mão direita no bolso, segura embaixo do braço um livro de muitas páginas. A sua cabeça é a cabeça de um lobo ameaçador, boca semiaberta mostrando os dentes. Ele olha de soslaio para atrás, controlando uma grande rede de caçar borboletas que segura com a mão esquerda e apoiada sobre seu ombro, dentro da rede alguns “troféus”, várias cabeças e corações. A figura e seus "troféus se destacam na frente dum pântano com neblina, de onde vem recortadas árvores secas, sem folhas.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 18 de julho de 2023 - Ariel Severino

Na semana passada, flagramos um dos roteiristas desses novos movimentos, Eduardo Bolsonaro, enquanto vendia a sua história para —vejam só— lobistas de armas.

"Prestem atenção na educação dos filhos. Tirem um tempo para ver o que eles estão aprendendo nas escolas e não vai ter espaço para professor doutrinador tentar sequestrar nossas crianças. Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante de drogas que tenta sequestrar e levar os nossos filhos para o mundo do crime. Talvez até o professor doutrinador seja ainda pior."

O professor doutrinador é personagem frequente nessa forma de fabulação que são os boatos que os ultraconservadores contam e em que acreditam. Assim como o gay pedófilo, o liberal cristofóbico, o esquerdista que induz criancinhas à homossexualidade, a pessoa trans que se esgueira em banheiros unissex para espiar mulheres, o sinistro comunista, dentre outros tantos tipos extravagantes que povoam as suas histórias de terror moral, o professor doutrinador, basicamente, serve para assombrar.

Aliás, o grande mérito da extrema direita no período da sua ascensão foi a sua capacidade de identificar os estratos de medo e de raiva dos brasileiros e de extrair deles o combustível para a sua boataria.

Na doutrina por trás da fábula, o professor doutrinador é um bicho-papão e um lobo mau. Ele sequestra e alicia criancinhas, mas é, também, a soma de todos os nossos medos, uma vez que a sua maldade consegue alcançar até mesmo a dimensão mais preciosa e protegido da nossa vida particular: nossos filhinhos.

Depois de identificar o mal e de isolá-lo em um grupo, os professores, duas ações precisam ser tomadas. A primeira é uma clivagem moral, pela qual nos separamos dos que participam ou são cúmplices da maldade, no caso, a esquerda progressista, classe a que os docentes pertenceriam.

Com isso, os virtuosos conservadores reivindicam sua superioridade moral ante o vício e a malignidade dos que profanam a infância. A segunda ação requerida depois de isolar a maldade consiste em projetá-la sobre quem pode ser materialmente punido: o bode expiatório.

Lugares-comuns dizem muito sobre as sociedades e os grupos em que prosperam, pois costumam expressar e, ao mesmo tempo, reforçar, determinados sentimentos subjacentes aos coletivos, como hostilidade, esperanças ou temor.

A distribuição proporcional do tipo de personagem tende a indicar qual é a moral dominante em um grupo: excesso de confiança e otimismo dão margem a personagens de sonhos dourados; desespero social e moral em baixa são povoados por personagens de pesadelos: bichos-papões, lobos maus e bodes para a conveniente expiação coletiva.

Não sei quantos creem nas fábulas que o bolsonarismo conta para assombrar e organizar a raiva, a ansiedade e a frustração das massas ultraconservadoras a que se dirigem. Só sei que os seus roteiristas e dramaturgos suam a camisa várias vezes todos os dias para, como diria Carluxo, disputar a narrativa. E vender assombrações.

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