Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

'Chapeuzinho Vermelho' de Perrault, com fim macabro, renasce em novo livro

'Pra Que Essa Boca Tão Grande?' homenageia conto clássico do século 17, em que o Lobo devora a menina e sua avó

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Como não dá para chamar de spoiler o final de uma história publicada há 326 anos, já vale dizer logo no começo —sim, aqui a Chapeuzinho Vermelho e a avó dela são devoradas pelo Lobo, sem que nenhum caçador apareça para salvá-las ao abrir a barriga do vilão a tesouradas ou machadadas.

É essa versão do conto clássico, publicada em 1697 pelo francês Charles Perrault, que ganha reconto em forma de homenagem no livro "Pra Que Essa Boca Tão Grande?", da dupla Tino Freitas e Raquel Matsushita, recém-lançado pela Panda Books.

Ilustração de "Pra Que Essa Boca Tão Grande?", da Panda Books
Ilustração de "Pra Que Essa Boca Tão Grande?", da Panda Books - Divulgação

Não é difícil entender por que a história de Perrault não é a mais famosa nem a mais conhecida hoje em dia. O final é duro e sem maniqueísmos, beirando o choque. Depois do famoso diálogo sobre braços, orelhas, olhos e dentes tão grandes, o texto termina desse jeito: "E, dizendo essas palavras, o lobo mau se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a comeu". Ponto final. Nada além disso.

A tradução usada aqui é a do poeta Leonardo Fróes em "Contos da Mamãe Gansa", de Perrault, edição lançada pela Cosac Naify que traz a íntegra dos contos de fadas do século 17 escritos pelo autor —além de "Chapeuzinho", há clássicos como "A Bela Adormecida", "O Gato de Botas" e "Cinderela", por exemplo.

Se hoje essa versão pode parecer macabra demais para ser lida com as crianças, já que não há uma redenção final nem o famoso "viveram felizes para sempre", por outro lado ela explora a maior potencialidade do conto. "Chapeuzinho Vermelho" é só na superfície uma lição de moral sobre armadilhas da desobediência e punições por não andar na linha.

O conto é mais profundo e fala sobre crescer, amadurecer e transitar da infância para a vida adulta —ora, não é gratuita a cor vermelha no adereço da personagem. No fundo, todos nós, adultos e crianças, sabemos que Chapeuzinho não se esforçou tanto assim para fugir do Lobo. É como se, na verdade, ela quisesse inconscientemente provocar esse encontro. E todos os jovens não fazem o mesmo? Na busca de afirmação, não buscam o contato com o perigo e testam as fronteiras do proibido?

"Chapeuzinho Vermelho" é uma dessas narrativas europeias ancestrais que falam sobre os nossos ritos de passagem, tocando em temas tão humanos como o medo, a morte, o amadurecimento e o desconhecido. Digo ancestral porque, assim como outros contos clássicos chamados de contos de fadas, "Chapeuzinho" não saiu exatamente da cabeça de Charles Perrault. O que ele fez foi documentar em livro uma história oral passada de geração em geração, aproveitando para editá-la e criar uma forma literária para ela.

Tanto que os irmãos Grimm recontaram a mesmíssima fábula no primeiro volume de seus "Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos", lançado mais de cem anos depois da obra de Perrault, em 1812. Na edição dos alemães, porém, já aparece a figura do caçador que garante o final feliz e que abre o bucho do Lobo com uma tesoura, tirando Chapeuzinho e sua avó das entranhas do bicho, ambas vivas.

É por isso que é digno de comemoração o lançamento de um livro como "Pra Que Essa Boca Tão Grande?". Ele tem coragem de abdicar do "felizes para sempre" e prestar homenagem à versão pouco fofa de Perrault. Ao mesmo tempo, os autores também percebem que esse conto clássico se transformou constantemente ao longo dos séculos e, já que é assim, aproveitam para atualizá-lo.

As referências ao original estão espalhadas por toda a obra, que já começa com a ilustração de um livro antigo. Aliás, páginas amareladas desse volume ancestral estão sempre presentes nos desenhos, como se o leitor nunca saísse de um velho conto de fadas. Imagens clássicas de "Chapeuzinho Vermelho" também são vistas por paredes e quadros e ajudam a criar as pontes.

Mas há mais detalhes. O número da casa da avó, por exemplo, é justamente 1697, ano de lançamento de "Contos da Mamãe Gansa". Além disso, o texto também dialoga com um fraseado parecido com o de Perrault e busca manter a forma original sempre por perto.

A narrativa só muda mais para o fim, quando Chapeuzinho começa a fazer mais perguntas do que aquelas famosas, sobre olhos e dentes enormes, surgidas do ruído provocado por um lobo vestido de idosa. Ela questiona por que o céu é azul, quer saber se o ovo ou a galinha nasceu primeiro e pede até a senha do wi-fi, que é "minhanetaehchatadesde1697". A paciência do vilão, é claro, se esgota.

O livro até ganha ares lúdicos nessa hora, mas não se engane. Ele acaba do mesmo jeito que a história de Perrault: "Dizendo essas palavras, o lobo se atirou sobre a menina e a comeu". Fim.

Pra Que Essa Boca Tão Grande?

  • Preço R$ 46,90 (44 págs.)
  • Autoria Tino Freitas e Raquel Matsushita
  • Editora Panda Books

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