Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu Livros

Protejam as crianças da literatura

Quem ama censura

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"Eu sou a favor da suspensão, porque não é certo o ensinamento desse livro", afirmou uma jovem mãe mineira, ao ser indagada sobre o que achava de o "Menino Marrom", de Ziraldo, ter tido o seu uso didático temporariamente suspenso em Conselheiro Lafaiete, em Minas Gerais.

A convicção que se repete na voz de um jovem pai, que acrescenta que é preciso estar alerta aos livros escolares, sim, e já tinha até planejado ir à Secretaria de Educação "com relação a alguns livros" de leitura obrigatória. Notem o plural.

Na ilustração toda em preto e branco, exceto uma grande tesoura lilás, aberta, mal encarada, cortando para todo lado e com olhos ameaçadores. Ao lado da tesoura, andando, um menino de perfil, vestindo camiseta, bermudas e tênis. Está lendo atentamente um livro e andando para a direita do quadro da ilustração. Cabelos bem curtinhos, da sua testa saem vários tubos fininhos, que tem nas pontas livros. Alguns dos livros já estão no chão, pois a grande tesoura lilás acaba de cortá-los
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino/Folhapress

Fatos dessa natureza têm recebido enorme cobertura da mídia e inundado o debate público nacional a partir dos ambientes digitais. Não é claro para mim se foi a cobertura que aumentou ou se realmente houve um incremento nas ações de pais e autoridades para restringir o acesso de crianças e jovens a determinados livros. De todo modo, é notável como esses episódios continuam a se repetir.

Há quem salte para grandes conclusões, atribuindo ao avanço do bolsonarismo uma onda de moralismo inquisitorial e uma temporada de caça a livros e a outras bruxarias artísticas e literárias no país. E há quem diga claramente que a paixão por censurar se restringe a obras antirracistas ou com temáticas relacionadas à cultura africana no Brasil. As evidências, contudo, não autorizam saltos tão grandes.

Primeiro, se é verdade que a ultradireita acredita que o mal pode residir em livros e representações artísticas, identitários de esquerda compartilham o mesmo temor e idêntica vontade de proibir, cancelar e punir. A única diferença real entre as duas posições reside na definição do que exatamente constitui o mal.

Para identitários, livros ofendem minorias, oferecem "gatilhos" que acionam sofrimentos em certas pessoas, induzem ao racismo, à misoginia, à homofobia e à transfobia e colonizam o pensamento. Para os ultraconservadores, a literatura ensina ideias religiosas falsas, induz à homossexualidade, faz doutrinação ideológica, promove a ideologia de gênero e o comunismo, além de expor crianças à violência e ao sexo.

Em ambos os casos, há a convicção comum de que as crianças, quando não todas as pessoas, precisam ser protegidas dos livros. E, se possível, que se deem alguns passos mais, que variam desde a reescrita "politicamente correta" —alô, Monteiro Lobato— ou "de acordo com a sã doutrina" de obras literárias, até a criação de listas de livros e autores proibidos e a emissão de condenações públicas contra autores, eventualmente até enquadrando-os em algum tipo penal.

A rapidez com que se passa do julgamento moral de alguém que se sente ofendido —e o "sentir-se ofendido" é considerado motivo suficiente para a decisão de que um livro não presta— até o pedido de censura e punição ao autor é a mesma nos dois grupos. O identitário grita "racismo religioso" ou "transfobia" com a mesma celeridade com que o conservador conclui que "não é certo o ensinamento desse livro".

Em segundo lugar, ao examinar as razões enunciadas por quem considera que a obra faz mal, notamos que a censura é invariavelmente vista como um ato de amor e zelo, pois o censor está sempre protegendo alguém vulnerável —crianças, jovens, membros de minorias, pessoas ignorantes, a massa ingênua.

Na bibliografia sobre o tema, já se constatou há anos que três variáveis são importantes —o quão protetora é a pessoa que pede por censura, o quão vulnerável ela julga ser a pessoa ou grupo que quer proteger e a magnitude do mal que ela julga ver no objeto que deseja censurar.

A estimativa do nível do mal depende de muitos fatores, inclusive do grau de conhecimento da obra julgada. Grandes leitores raramente têm medo de livros. Quem joga games eletrônicos não vê os danos que os não jogadores imaginam. Os extremamente protetores tendem a querer censurar tudo —celulares, games, televisão, YouTube, livros—, enquanto os que acham que todo mundo sabe se virar no mundo não querem censurar nada.

Quem considera os outros muito ingênuos, estúpidos ou influenciáveis fica aflito com o que eles leem ou veem. Quem acha que todo mundo é mais ou menos como ele acredita que todos são suficientemente sagazes para driblar manipulações.

Curiosamente, as mesmas pessoas que consideram patéticas e absurdas as alegações de que o livro de Ziraldo incentivaria a violência, que é um fato, consideram altamente sofisticado acreditar que smartphones e plataformas digitais vão tornar seus filhos estúpidos, que games os tornarão violentos, que a televisão... Ah, desculpem, as crianças não veem mais televisão. Deve ser por isso que estamos melhores.

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