Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu terrorismo

Nenhuma moralidade justifica o assassinato de israelenses pelo Hamas

Como as crenças têm de ser monolíticas, supomos que quem delas diverge comprou o pacote inteiro de depravações

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Quem conseguiu controlar o próprio asco pode ter visto centenas de imagens estarrecedoras sobre os atos do Hamas contra os cidadãos israelenses no último sábado.

Circulam vídeos de cadáveres vilipendiados, garotos em desesperada fuga em campo aberto, caçados a tiros, o pavor de mulheres impotentes exibidas como espólio de guerra por homens com fuzis, corpos de famílias inteiras trucidados em rodovias. Nos dias seguintes, terá visto imagens semelhantes e relatos da extrema brutalidade vindos da retaliação do governo de Israel.

Na ilustração de Ariel Severino dois grandes olhos vistos de frente. O branco dos olhos não é mais branco e sim vermelho intenso. Num dos olhas resalta a pupila em preto e branco. No outro, tomando o lugar da pupila, um cerebro em tons de ocre tostado, as terminações nervosas do cérebro saem para fora e para abaixo do olho como uma raíz… que cortada, que se separa jorrando sangue. 
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino

Confessei a minha dificuldade em conciliar o horror visto com os discursos que surgiram para endossar os ataques a Israel como um ato de legítima defesa dos oprimidos palestinos. Em mim, isso geraria imensa dissonância cognitiva, aquele desconforto que se costuma ter quando nossas crenças, atitudes ou valores entram em contradição.

Compaixão não casa com justificação e júbilo, não tem jeito. Para minha surpresa, uma parte ruidosa dos meus interlocutores resolveu o próprio mal-estar moral e cognitivo optando por aceitar a brutalidade contra cidadãos indefesos como um dano colateral. Lamentável, mas exagerado com más intenções pela mídia ocidental e o império americano. Planilhas à mão, mostram, à guisa de desculpa, o quão superior é o número de palestinos mortos pela mão violenta do Estado de Israel.

Os argumentos de justificação vão da falsa neutralidade sugerida pela sentença "não há inocentes nesta guerra", passam pelo clássico "sommelier de indignação pública" declarando que, quando os mortos são palestinos, ninguém se importa, e chegam até a formulação explícita de um Breno Altman: "Quando um povo submetido ao colonialismo se rebela contra um Estado colonial, por quaisquer meios que seja, não há dúvidas sobre o lado certo da história".

"Por quaisquer meios." Eis mais uma aplicação do mesmo princípio que vem há anos envenenando nossas democracias: os oprimidos têm um irrefutável direito à retaliação, mesmo que a fonte da opressão seja um Estado e um governo, mas quem pague com a sua vida e dignidade seja quem nada tem a ver com isso.

Na guerra não há inocentes? Inocentes é o que mais há nelas, e são os primeiros a serem chacinados pelos senhores da guerra. Vivemos como indivíduos, mas, nesse tipo de moralidade "estrutural", os indivíduos não importam, só a estrutura, o sistema. Ao poder opressor —e todas os mortos e sequestrados são parte dele— nada se concede, nem a compaixão.

Há uma militância de esquerda que se crê intelectualmente mais sofisticada e moralmente muito superior ao bolsonarismo, mas que se comporta do mesmo modo. É como se todos, de um lado e do outro, recebessem o mesmo memorando das "15 coisas em que acreditamos" e tomassem posições automáticas cada vez que alguma está em questão.

Quanto mais intensa e automática a exibição de alinhamento, mais serão reconhecidos e recompensados pelo grupo com que se identificam.

Naturalmente, o esforço para exibir alinhamento inclui não apenas defender os valores e as crenças do grupo da forma mais radical, mas também atacar os "de fora", o que inclui não apenas os adversários diretos, como também os dissidentes, os que se recusam a aderir, os que querem discutir a crença e até os que reivindicam que, neste caso, com o horror ainda queimando as nossas retinas, a adesão automática a teses esquemáticas de oprimido e opressor, que tudo justificariam, é mera expressão de desumanidade.

Como as crenças têm de ser monolíticas, para facilitar a portabilidade, supõe-se que quem delas diverge comprou o pacote inteiro de depravações. Assim, se sua régua moral leva você a expressar repugnância ante crianças sequestradas e cadáveres nus de mulheres, exibidos como troféus em picapes de terroristas, concluem que você apoia Netanyahu, votou em Bolsonaro, é sionista, imperialista e não dá a mínima para o que o governo de Israel faz contra os palestinos. O que faria da sua ética um desprezível episódio de hipocrisia. Ao dogmático a única posição honesta possível já está ocupada e é a dele.

Na ética para não dogmáticos, Mehdi Hasan é brilhante na síntese: "Moralmente, você não pode justificar o assassinato de civis palestinos, mesmo que diga que está combatendo o terrorismo. Mas moralmente você tampouco pode justificar o assassinato de civis israelenses, mesmo que diga que se combate a ocupação".

Mas explique isso a quem acha que distinções são de fracos.

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