Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Lula, o PT e a encruzilhada da democracia global

Quem apoia os absurdos arranjos da Venezuela não tem moral para gritar 'golpe' em seu país

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Nos dias que correm, a democracia não é uma brincadeira. A ascensão da extrema direita pode até ser o fenômeno mais vistoso, mas faz tempo que a democracia não sofre um conjunto de ameaças tão consistentes e em tão grande escala. Novos movimentos sociais e partidos políticos intolerantes e radicais desafiam, tanto nas eleições quanto na percepção pública, praticamente todos os fundamentos da democracia moderna. E mostram que vieram para ficar, quer aceitemos essa realidade ou nos refugiemos na ilusão de que é tudo feio demais para ser verdade.

Em vários aspectos, as décadas de 2020 e 1920 têm mais em comum do que se imagina. São tempos confusos e inquietantes para a política e a democracia, marcados pelo avanço constante de posições radicais e populistas, que viam a democracia liberal como um estorvo. Na década de 1920, ainda não se sabia, mas o radicalismo antidemocrático não estava a passeio. Já na década de 2020, estamos usando justamente o que sabemos do século passado para tentar esconjurar a sua repetição, embora as reiteradas vitórias de extremistas e radicais possam indicar que esta é a nova normalidade da política.

E, assim como nos anos 1920 soou o alerta de que a comunicação de massa era chave para pretensões extremistas, na década de 2020 não estamos menos inquietos quanto ao papel da comunicação política digital nesta nova era de intolerância. No século passado, o uso subsequente da comunicação na consolidação dos movimentos nazifascistas nos anos 1920 e 1930, além de sua aplicação em larga escala durante a Segunda Guerra, confirmaram os piores temores sobre o impacto da comunicação na mobilização de pessoas, manipulação de consciências, formação de representações da realidade e dos valores pelos quais orientar a vida intelectual e moral.

Na ilustração, um cigarro Havana acesso dos dois lado, com bastante fumaça e cinzas da cada lado. Está apoiado num cinzeiro de cristal, com as bandeiras da Venezuela e do Brasil pintadas na base transparente. Na lateral do cinzeiro, está gravada a palavra “democracia” toda em caixa alta. O fundo da ilustração é branco.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 13 de agosto de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Desde metade da década de 2010, após uma longa primavera democrática, entramos diretamente em um inverno onde se disputa, palmo a palmo, nos ambientes digitais e nas novas ecologias midiáticas, os afetos e as convicções dos nossos contemporâneos sobre se valores como pluralismo, tolerância, diálogo, negociação de interesses e interdição do ódio ainda devem sustentar o nosso contrato social. Não sabemos ao certo o que os próximos anos nos reservam nem se as sociedades continuarão a alimentar o lobo autocrático ou darão voz aos seus instintos democráticos, mas é certo que a comunicação continuará no centro dessa disputa.

Por isso, não podemos vacilar quando o assunto é democracia. Eleitores têm aberto mão de aspectos fundamentais desse regime ou de candidatos com perfil democrático em nome de causas desproporcionais, como se livrar da invasão de estrangeiros, acabar com a corrupção política ou mandar o PT para o quinto dos infernos.

Lula recebeu uma nova chance de governar o país porque muitos viram nele o único meio de salvar a democracia do bolsonarismo. E ninguém vai perdoá-lo se ele colocar essa imagem a perder para salvar um governo, que não lhe diz respeito e com reputação mundial de autocrata, apenas por um delírio de afinidade ideológica.

Quando um arranjo suspeitíssimo de forças políticas tomou o mandato da presidente petista recém-eleita, usando os subterfúgios que estavam à mão, o PT correu a pedir apoio àqueles que não tinham particular apreço por Dilma Rousseff, mas consideravam que a soberania popular manifestada nas urnas deveria ser respeitada. Além disso, o PT nunca foi tão democrata quanto quando bradava que "impeachment sem crime de responsabilidade é golpe" e que as urnas eram sacrossantas. E passou os quatro desesperados anos do bolsonarismo rugindo em defesa da democracia, e ainda mais durante a intentona de 8 de janeiro.

Naqueles momentos, ninguém dizia que o socialismo era mais importante que a "desprezível democracia burguesa" ou que democracia com desigualdade social não era democracia. Como é que, quando se trata da Venezuela, eleições livres, justas limpas podem ser ignoradas?

Lula e o PT precisam se decidir de uma vez por todas: ou a democracia importa —em qualquer lugar do mundo— ou o que realmente lhes interessa é que o poder político esteja nas mãos certas. Essa decisão pode representar a desmoralização definitiva de todas as suas pretensões de fiadores da democracia a qualquer preço.

Pois quem apoia os absurdos arranjos da Venezuela não há de ter qualquer moral para gritar "golpe" quando seu candidato é impedido de concorrer, quando tomam o mandato de sua presidente ou quando um caudilho incita a massa para impedir que o presidente eleito seja diplomado.

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