Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Marçalizaram o debate eleitoral na cidade de São Paulo

Quase como súplica, a mediadora verbalizou: 'Por favor, respeitem um ao outro'

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Durante os anos em que os cidadãos recorriam majoritariamente à televisão para obter informações políticas essenciais às suas decisões eleitorais, três formatos principais foram desenvolvidos e explorados para que os candidatos pudessem se apresentar diretamente ao público: debates televisivos, horário de propaganda eleitoral gratuita e entrevistas diretas, sem edição.

Esses três formatos representam diferentes maneiras de lidar com a tensão entre jornalismo e campanhas eleitorais. Na entrevista direta, o jornalismo tem o controle, propondo as perguntas, estabelecendo o tom da conversa e regulando o tempo das respostas. Na propaganda eleitoral, o controle é totalmente das campanhas, exceto pelos limites legais. Já os debates eleitorais são espaços de negociação entre os interesses em disputa, onde o equilíbrio de forças entre jornalismo e campanha varia consideravelmente de acordo com o país, a época e a emissora.

Quando o jornalismo se impõe —com maior controle sobre os temas, regras rígidas de comportamento e sistemas de checagem em tempo real— as campanhas reclamam que os debates são "engessados". Por outro lado, quando as campanhas conseguem impor maior liberdade e flexibilidade, é a vez de os jornalistas e a opinião pública reclamarem que os candidatos desvirtuaram os debates, usaram deliberadamente o espaço para performances e mentiras, "baixaram o nível" e não informaram o eleitor.

Embora a era da televisão tenha ficado para trás, a era digital não facilitou as coisas.

Primeiro, porque a maioria das pessoas não depende mais dos debates para conhecer os candidatos. Está tudo online, em vídeos, entrevistas, reportagens de jornais e posts. E tudo o que está online pode ser movimentado digitalmente para fins de propaganda. Quando as pessoas se expõem ao debate, já têm uma opinião formada sobre as candidaturas que lhes interessam para aderir ou odiar.

Segundo, porque é também uma era de extrema politização, sinônimo de radicalização e polarização. As pessoas sempre têm lado, sobre qualquer questão, decidido por antagonismo ao "outro lado". Quem assiste a um debate eleitoral não chega aberto a formar uma opinião nova ou a mudar de preferência a partir do que vai ver, como crê a mitologia democrática; veio para confirmar que o outro lado realmente não presta e para ver seu candidato dar uma surra nele.

Um homem submerso até a cintura nas águas de um esgoto desenhado em bico de pena preto e branco. Ele veste terno e camisa com o colarinho desabotoado. No lugar da cabeça e pescoço, há o cotovelo de um largo cano de esgoto. Dali, jorram detritos, podres, pintados em amarelo esverdeado, dá para ver a língua do homem, que parece vomitar todo o que tem dentro. No fundo, desfocado, um muro de contenção de um piscinão.
Ariel Severino/Folhapress

O último debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, promovido pela Gazeta e pelo MyNews, ilustra bem essa realidade. Embora o jornalismo tenha se esforçado para estruturar a interação entre os candidatos e impor uma pauta de questões substantivas, os jornais do dia seguinte destacaram que o debate havia se transformado em uma "luta na lama" sem precedentes, porque os blocos em que os políticos interagiram foi um vergonhoso ringue de insultos, palavrões, provocações e trocas de acusações.

Marçal tem absoluta autoconsciência desse perfil de assistência aos debates. Disse-o com toda clareza: "Eu gosto de baixaria, eu gosto do que vocês estão fazendo aqui". Para ele é claro que "aqui não é um jogo de quem tem as melhores propostas", mas para ver quem mais aguenta porrada. "Isto aqui é só teatro".

Foi de fato nesse modelo que o debate transcorreu. De uma parte, a mediadora, os jornalistas escalados para perguntar e, justiça seja feita, Tabata Amaral, que não quis jogar o jogo, tentando crer que do outro lado da tela tinha um eleitor que precisava ver um debate de ideias, propostas e personalidades para tomar uma decisão eleitoral.

Na outra frente, Marçal estava ali para gerar os tais cortes —das frases de efeito, dos apelidos ofensivos, das suas mímicas e da fúria provocada nos outros candidatos— para a campanha de verdade, a digital, pois entendeu que o público já escolheu um lado e ele precisa apenas reforçar as deixas que as pessoas usam para aderir ou odiar.

Juntaram-se a ele Nunes, Datena e Boulos, que praticamente reduziram o debate a uma sucessão de acusações recíprocas, palavrões e apelidos depreciativos.

Se você acreditar no que esses debatedores disseram uns dos outros, decerto se terá convencido de que praticamente apenas bandidos se candidataram neste ano. Suas opções são um "ladrãozinho de creche", "um invasor sem-vergonha", "um golpista do Pix e ladrão de velhinhas" e um "gagá comedor de açúcar".

Enquanto isso, Tabata e quem ainda estava lúcido nessa cidade naquela noite imploravam em desespero pelo que Denise Toledo, a mediadora, verbalizou quase como súplica: "Por favor, respeitem um ao outro".

Tarde demais. Marçalizaram o debate eleitoral.

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