Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Veni, Vidi, Troli

É triste ver ricas experiências de viagem serem reduzidas a piadas em redes sociais

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Com os dedos estendidos como numa pinça, a turista seguia, às gargalhadas, as instruções de sua colega. A língua era provavelmente o mandarim, mas não era difícil decifrar os seus comandos: “Um pouco mais para baixo, agora um pouquinho mais para a esquerda, afasta mais a mão”. Depois de um par de cliques elas se juntavam para conferir o resultado —e rir ainda mais.

As duas chinesas estavam na frente da estátua de David, de Michelangelo, e não estavam sozinhas. Como elas, outros visitantes reproduziam a cena: por uma ilusão de ótica, brincando com a perspectiva, uma imagem onde a pessoa parecia apertar a genitália mais famosa do cânone da arte Ocidental. Uma “piada” pronta para as redes sociais. 

Ilustração
Maíra Mendes

Pouco importava que elas estivessem diante de uma das esculturas mais importantes da história da arte. O que valia para aquelas pessoas era o fato de elas terem viajado uma longa distância, enfrentado horas de avião, gastado uma grana de hotel, uma entrada para Academia de Belas Artes, em Florença, onde David repousa majestoso, só para mostrar que pegaram naquilo.

Cada um viaja como bem entende. Mas não deixa de ser um pouco triste imaginar que toda a riqueza das experiências que uma viagem pode trazer esteja hoje reduzidas a uma trolada de Instagram, que já nem é mais tão original.

Vi essa cena neste fim de semana, numa visita àquela que é talvez uma das cidades mais ricas em arte de toda a Itália.

Estive em Florença pela primeira vez há quase 40 anos —um adolescente mochileiro que sonhava ver de perto não apenas o David mas também outros trabalhos de Michelangelo. Além dos Giottos, Filippo Lippis, Fra Angelicos, a “Anunciação” de Leonardo da Vinci, e os Botticellis, sobretudo o “Nascimento de Vênus”. 

Viajei, naqueles idos do início da década de 1980, com a missão apaixonada de estar perto de obras-primas que eu só conhecia por reproduções esmaecidas de livros de mitologia greco-romana, uma obsessão da minha adolescência. 

Mais do que o intuito esnobe de expor um privilégio, o que me alegrava era a chance de estar perto dessa arte, de poder tocá-la não com um truque na câmera fotográfica, mas com minha sensibilidade.

O que eu queria era devorar cada pintura, cada escultura, com meu apetite infinito pelas portas que a arte abre na imaginação. E Florença, um lugar sobre o qual ainda vou escrever mais na próxima coluna, era, seguindo nessa metáfora, um prato cheio para aquele garoto que ainda estava aprendendo a viajar. E ainda é!

Meu lamento diante da trolada no David de Michelangelo não é que mais pessoas estejam ali para perturbar essa visita —nunca vou deixar de comemorar a possibilidade de mais e mais viajantes circularem pelo mundo. Mas fico triste por essa experiência tão rica ter sido reduzida a uma brincadeira em busca de curtidas. É só para isso que viajamos hoje?

Pouco tempo atrás, em mais uma visita ao Louvre, o museu mais famoso do mundo, em Paris, vi uma blogueira brasileira diante da Samotrácia (sim, aquela que aparece no vídeo de Beyoncé) fazendo um “live” em que dizia: “Não sei o que é isso, mas tá todo mundo tirando foto, então vou tirar também”.

O que me chocou na cena não foi a ignorância diante do que ela via, mas sua falta de curiosidade em afastá-la. É como se boa parte dos viajantes hoje se orgulhasse de não saber nada sobre as coisas e os lugares que visitam. E ficam felizes em voltar para casa com nada além de uma foto com a mão no...

Por sorte, na mesma galeria da Academia em Florença, vi gente com aparelhos auditivos ouvindo informações sobre aquele trabalho. Guias sussurrando a uma atenta plateia detalhes daquela maravilha nascida do mármore bruto pelas mãos de um gênio. E pelo menos uma criança que, puxando o braço do pai, dizia em italiano: “Guarda la mano di un gigante”. E seu pai, ao perceber que o filho notou a estranha proporção da mão de David, começou pacientemente a lhe explicar as razões de tal “deformação”. 

Enfim, uma esperança.

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