Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Cuidado com a 'anestesia turística'

O perigo de não ver encanto nas paisagens deslumbrantes

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Ouvi chuva durante toda a noite e quando acordei ela não havia dado trégua. Acordei antes do despertador tocar às 5h15, tamanha minha expectativa para conferir um dos maiores espetáculos naturais do mundo que eu ainda não tinha visto de perto.



Falo de uma lacuna no meu currículo de viajante: as Cataratas do Iguaçu. Assim como Fernando de Noronha, as famosas quedas d’água são uma atração que eu simplesmente ainda não havia visitado.

Cataratas no Parque Nacional do Iguaçu, em Foz do Iguaçu - Parque Nacional do Iguaçu


Claro que a justifica para isso nunca foi a falta de interesse, mas de oportunidade. Veja o caso das próprias cataratas: já passei por Foz do Iguaçu quatro vezes, mas sempre com a agenda apertada, sem tempo para ir até o parque nacional onde fica atração.

Na última segunda-feira, porém, eu estava otimista. Tinha sim uma premiação que eu iria conduzir à noite no próprio hotel do parque, o estupendo Belmond. E eu tinha a manhã de terça livre para me encantar com a força daquelas águas.

Infelizmente era justamente esse elemento que ameaçava atrapalhar meu programa. Mas lá pelas 7h, convencido de que o aguaceiro tinha se tornado apenas uma garoa, caminhei até a grande queda, o som estrondoso de milhões de metros cúbicos despencando por segundo silenciando as batidas ansiosas do meu coração e até mesmo os distantes trovões.



Quando cheguei o mais próximo que podia, tive um baque. Sozinho na área, eu tinha toda a chance de me conectar com aquela maravilha, mas me perguntei: era isso mesmo que eu esperava encontrar?

As Cataratas do Iguaçu, assim como vários outros pontos turísticos fortes pelo mundo, nos trazem um incômodo do qual só me dei conta então: estamos tão acostumados a ver imagens deslumbrantes delas que quando estamos lá, cara a cara com a atração, parece que ela não tem mais nenhum encanto a nos oferecer. Ou tem?

Chamei esse fenômeno de "anestesia turística". E pensei em outras paisagens que podem provocar a mesma decepção: o Grand Canyon americano; o monte Fuji no Japão; os fiordes noruegueses; o glaciar Perito Moreno na Patagônia argentina.

O glaciar Perito Moreno, na Argentina - Lucinda Elliott - 14.out.23/Reuters


Aliás, corremos este perigo também com as construções humanas, da Torre Eiffel ao Coliseu de Roma, das muralhas da China ao Taj Mahal na Índia; dos profetas de Aleijadinho em Congonhas (MG) à estátua da Liberdade nova-iorquina.

No scroll infinito de imagens hoje nas nossas telas, que impacto essas atrações ainda são capazes de nos provocar? Nenhuma, pensei rápido. Pelo menos se seu único objetivo diante delas é só tirar uma selfie.

Esse exercício tolo (que eu adoro!) imposto pelas nossas redes sociais parece querer diminuir nossa experiência pelo mundo –e, ao me dar conta disso, diante das águas de Iguaçu, resisti.

Zeca Camargo nas Cataratas do Iguaçu
Zeca Camargo nas Cataratas do Iguaçu - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


Ir pessoalmente a um lugar desses é muito mais do que fazer um registro para o Instagram. Fiz o meu, sim, não tenha dúvidas. Mas logo em seguida mergulhei naquilo que meus olhos estavam devorando.

Com eles eu não apenas enxergava, mas também ouvia, degustava e sentia quase o toque poderoso do fluido em movimento na minha pele. Quando fechei as pálpebras, todos esses sentidos, inclusive o da visão, ficaram mais fortes.

Cataratas do Iguaçu, no Paraná - Leonel Alves/Divulgação


Pronto: eu estava livre daquele estado anestésico. A chuva já havia voltado com força e eu mal tinha percebido. Olhei em volta e continuava sozinho. No entanto, estava pleno.

As cataratas me arrastaram para seu mistério que nenhuma imagem digital foi capaz de me oferecer, muito menos uma inteligência artificial. E pensei de novo na tal anestesia.

Só que dessa vez desejando que ela nunca mais se instalasse sobre mim. Não importa para onde eu vá mundo afora.

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