Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Uma cidade à prova de chuvas

Tudo o que eu via no céu eram tons de chumbo; cinza não, chumbo mesmo

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Nunca tinha estado lá num dia tão feio. Aliás, nunca tinha estado em nenhum outro lugar num dia tão feio.

Sim, teve uma vez em Miami, quando fui para entrevistar o Green Day, que fiquei preso no hotel com a banda, nos protegendo de um furacão. E uma tempestade tropical numa visita a Bali também foi puxado.


Mas eu estou falando de um daqueles dias de chuva quase intermitente, um nível acima da garoa, que quando dá uma pausa, tudo que se vê no céu são tons de chumbo. Cinza não, chumbo.

O guarda-chuva infelizmente não é apenas uma opção e me vi obrigado a desfrutar meu dia livre na cidade, que, diga-se, eu conheço muito bem, na companhia desse indesejado objeto. Sim, que nos projete, mas que não é bem-vindo em lugar algum.

Zeca Camargo numa estadia chuvosa em Paris - Zeca Camargo


Nos museus (e eu tinha planejado ir a dois deles), ele não passa da porta. Nas lojas, são sempre uma ameaça de esbarrar em alguma coisa e quebrar. E mesmo nos momentos de estiagem, o guarda-chuva é um nada glamuroso apêndice.

Saí cedo para passear e, com a visão limitada da minha abóbada portátil, comecei olhando as vitrines. Ainda estavam fechadas mas, já enfeitadas para o Natal, elas eram um conforto visual naquela manhã carregada de nuvens.

Atravessei uma das praças mais bonitas do mundo, a mais antiga da cidade, mirando não nas lindas fachadas harmônicas do século 18, mas seus canteiros. À beira do rio principal da cidade, vi a água do céu encontrando a correnteza.

No primeiro museu, uma trégua da umidade, se bem que minhas meias encharcadas não me deixavam esquecer que, depois de contemplar aquelas obras de arte, eu voltaria a me molhar. Pelo menos até o museu seguinte.

Comi num restaurante de bairro, Chez Nenesse, aonde sempre vou, e dei pela falta da sua dona. Pensei em perguntar para o filho se ela estava bem, mas imaginei que a chuva a tivesse feito desistir de sair de casa. Nem por isso o filé com fritas estava menos que impecável.

No Chez Nenesse - Zeca Camargo


Tinha então uma hora livre para algumas compras. Dois livros e dois perfumes que queria, mais um presente para minha mãe (dois, na verdade), que resultaram em sacolas pequenas, mas não impermeáveis.

Fui com elas respingando, tanto quanto o guarda-chuvas, até um ponto localizado em uma das avenidas que saem de um grande arco. De lá, uma van apertada me levou para ver uma retrospectiva histórica de um pintor definitivo do século 20, Mark Rothko.

Zeca Camargo na exposição de Rothko - Divulgação

Tudo que eu tinha nas mãos, como você pode imaginar, ficou na guarda-volumes logo na recepção e então, por quase uma hora, tive a sensação de flutuar —a vibração das cores nas telas, sem dúvida, contribuindo para isso.


Saí e já estava escuro. Peguei o metrô, linha 1, meu guarda-chuvas esbarrando com outros no vagão disputado. Desci na estação onde o fantasma de uma prisão de séculos atrás hoje é espantado por um anjo dourado em cima de uma coluna altíssima.

Ele está todo iluminado, sua claridade ampliada pela enorme tela de led anunciando a ópera "Turandot", de Puccini, dirigida por Robert Wilson, que vou ver no dia seguinte. Será que ainda dá tempo de ir a uma livraria na rue Bretagne?

Decido andar até ela sem pressa, equilibrando o crepe de queijo que comprei ali na rua, equilibrando a comida na mão do mesmo braço que carrega o guarda-chuva —a essa altura, totalmente inútil.

Estou de costas para o anjo, mas de repente vejo seu reflexo numa poça d'água e sou tomado por uma tal sensação de beleza, que me dou conta enfim que estou numa cidade que é, digamos, à prova de chuvas.

Nada, nem mesmo um dia feio como esse, é capaz de fazer com que você deixe de amar Paris.

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