Descrição de chapéu cracolândia

Região da cracolândia de SP busca nova cara em meio a conflitos

Obras prometem transformar área ocupada por usuários de drogas e reverter degradação

Comércio emparedado em quadra na região da cracolândia, que será demolida para dar lugar a hospital
Comércio emparedado em quadra na região da cracolândia, que será demolida para dar lugar a hospital - Zanone Fraissat/Folhapress
Thiago Amâncio
São Paulo

Fazia só uma semana e meia que a empregada doméstica Vera Lúcia Batista, 44, tinha entrado no emprego novo quando, na quarta-feira (18), teve que sair às pressas no meio do expediente porque estava ficando sem casa.

Ela vivia em uma quadra no entorno da cracolândia, na região central de São Paulo. As famílias estão sendo retiradas dali, e os imóveis, demolidos para a construção de um grande hospital estadual.
Logo ao lado, cinco prédios já estão erguidos, em frente à praça Júlio Prestes, com 914 apartamentos no total —o primeiro edifício vai receber moradores já em maio. 

No meio de tudo isso, centenas de dependentes químicos usam e vendem drogas na cracolândia, onde confrontos entre os usuários de crack e policiais têm sido constantes. 

Por um lado, a região virou um canteiro de obras e tem passado por transformações que prometem reverter o histórico de décadas de degradação. Por outro, moradores antigos dali, ativistas e profissionais da saúde reclamam que esses projetos ignoram quem já vive hoje naquela área.

Terreno do Complexo Júlio Prestes, no centro de SP, com edifícios em construção; local reunirá moradias populares, comércio, mercado e escola de música
Terreno do Complexo Júlio Prestes, no centro de SP, com edifícios em construção; local reunirá moradias populares, comércio, mercado e escola de música - Marcelo Justo/Folhapress

A mais recente polêmica ocorre na quadra que fica entre a rua Helvétia, a avenida Rio Branco e as alamedas Barão de Piracicaba e Nothmann. O governo paulista, hoje comandado por Márcio França (PSB), está retirando as famílias que vivem ali e demolindo os imóveis para construir uma unidade do hospital Pérola Byington.

A área é classificada como uma zona especial de interesse social, e qualquer mudança deve ser aprovada por um conselho gestor, formado por moradores e governo. Defensoria Pública e Promotoria afirmam que o conselho foi formado às pressas e que as remoções aconteceram antes de qualquer deliberação, o que o governo nega. 

Em 2013, quando o estado anunciou uma PPP (parceria público-privada) para construir hospitais, os imóveis da quadra foram declarados de utilidade pública, e seus proprietários receberam indenizações (que terminaram de ser pagas em novembro).

O governo cadastrou 164 famílias para receber R$ 400 de auxílio-aluguel, com a garantia de que o benefício só seria encerrado quando a família recebesse uma moradia definitiva do estado —não necessariamente na região.

Cerca de 70% da quadra já foi demolida. A ideia é que as demolições sejam concluídas neste semestre. Depois disso, a construção do hospital vai durar entre 30 e 36 meses —deve ser entregue em 2021, portanto. Alguns imóveis ficarão de pé: um casarão tombado na avenida Rio Branco e dois prédios na Helvétia.

O coordenador de implantação da PPP, Ricardo Tardelli, diz que o processo não foi atropelado: “A notícia de que a quadra viraria hospital tem cinco anos e foi muito difundida”, diz. “O conselho gestor foi montado conforme o habitual, publicado em Diário Oficial, com propaganda, convocação de famílias, eleição. Todo o trâmite foi cumprido”, diz.

Renata Moura Soares, 35, não se desgrudava do celular na tarde de quinta (26), na calçada da alameda Glete. Conselheira, ela dividia seu tempo entre trocar mensagens com funcionários da Secretaria da Habitação e atender às angústias dos moradores e comerciantes. Além do trabalho político, ela tinha que pensar também onde iria morar: “Não sei o que vou fazer, minha vida toda foi isso aqui”.

A empregada doméstica Vera Lúcia mudou-se para uma ocupação na região. “R$ 400 de auxílio-aluguel não paga nada, vou ter que desembolsar mais R$ 500. Para uma pessoa que ganha salário mínimo, como vou botar comida na boca dos meus filhos?”

“Esse é um lugar habitado, em condições de precariedade, e a forma como têm sido pensadas e feitas as intervenções agravam a situação de precariedade e vulnerabilidade dessas famílias”, diz a urbanista Raquel Rolnik, professora da USP e membro do Campos Elíseos Vivo, que criou um projeto alternativo de revitalização da área sem remover as famílias —o grupo tenta apresentar a proposta ao poder público.

Para Tardelli, todos os processos foram respeitados, e os moradores, contemplados. Ele cita que inclusive quem vivia em ocupações e não pagava aluguel também passou a receber a bolsa de R$ 400. “Um hospital, assim como moradia, tem a capacidade de movimentar a região, por 24h. Atrai pessoas”, diz.

Ao lado da quadra do hospital está o complexo Júlio Prestes, outra PPP, que vai entregar 1.202 moradias populares nos próximos anos —914 já em 2018. Mercado, creche e uma nova sede da Escola de Música de São Paulo também estão no projeto. Em frente, a praça Júlio Prestes já foi reformada.

“Você tem uma tentativa de décadas de recuperar a região, levando equipamentos culturais para a área. É o caso da Sala São Paulo, da Pinacoteca, do Museu da Língua Portuguesa. Mas só isso a gente viu que não dá certo. Atrair pessoas para morar no centro é a receita”, diz Philip Yang, do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole).

Mas governo e prefeitura têm ainda o desafio de garantir segurança aos novos moradores. Conflitos entre dependentes químicos e policiais voltaram a se tornar frequentes à medida que a entrega dos prédios se aproxima.

Na madrugada da última segunda (23), dezenas de pessoas invadiram as construções do complexo Júlio Prestes e levaram o que viam pela frente: desde cabos e canos até controladores de energia avaliados em R$ 30 mil. No mesmo dia, à tarde, incendiaram um carro e saquearam uma loja.

Mais transformações ainda estão em discussão. A prefeitura pretende construir um CEU (Centro Educacional Unificado), creche e mais moradias populares nas quadras adjacentes ao largo Coração de Jesus. O projeto foi anunciado pelo então prefeito João Doria (PSDB) em maio do ano passado, após operação policial, quando declarou que a cracolândia havia acabado. Mas ainda está longe de se concretizar: também precisa de aprovação do conselho gestor dessas quadras.

Do outro lado da Rio Branco está o terminal de ônibus Princesa Isabel, que a gestão Bruno Covas (PSDB) quer conceder à iniciativa privada. O vencedor da concorrência poderá construir sobre a estação um shopping, prédio de escritórios ou até residências.

Em frente, está a praça Princesa Isabel, que chegou a receber o fluxo da cracolândia no ano passado. Hoje reformada, a praça voltou a receber famílias e ganhou cercado para cachorros, parquinho, mesas, banheiros, aparelhos de ginástica e uma quadra.

Grade separa usuários de crack e trabalhadores de uma obra
Grade separa usuários de crack e trabalhadores de uma obra - Marcelo Justo/Folhapress
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