Grupos usam siglas de sem-teto para retomar lógica de cortiços em SP

Sem renda para aluguel, moradores se submetem às habitações precárias

À esq., casarão na esquina das alamedas Nothmann e Cleveland, hoje reformado e sede do Museu da Energia
À esq., casarão na esquina das alamedas Nothmann e Cleveland, hoje reformado e sede do Museu da Energia - Zanone Fraissat/ Folhapress
Fernanda Mena
São Paulo

Surgidas nos anos 1980, organizações de reivindicação do direito à moradia protagonizaram a primeira invasão de imóvel no centro de São Paulo em 1997.

Um casarão na alameda Nothmann, onde vivera o inventor Santos Dumont (1873-1934), foi convertido em abrigo para 400 famílias oriundas de cortiços da região.

Desde esse marco inicial, ocorreram centenas de invasões de prédios. E os poucos movimentos que havia cresceram e se proliferaram a partir da demanda cada vez maior por moradia para a população de baixa renda.

“A tecnologia da ocupação surgiu como forma de denúncia da quantidade de imóveis ociosos no centro e da necessidade de moradia para quem era despejado”, afirma o engenheiro e urbanista Luiz Kohara, 64, autor de estudos sobre a questão habitacional.

Em 2015, segundo a Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional na região metropolitana de São Paulo era de 639 mil domicílios, ao mesmo tempo em que havia, no mesmo perímetro, 595 mil vagos com potencial de ocupação.

Para Edson Miahusko, 45, autor de “Movimentos de Moradia e Sem Teto de São Paulo” (Alameda Editorial), a multiplicação das siglas e das invasões na região central emerge num contexto de encarecimento da cidade e ampliação da especulação imobiliária. 

“Na falta de políticas habitacionais, a ocupação surge como alternativa a famílias e trabalhadores pobres”, diz ele, professor de ciências sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

A alta do desemprego e a queda na renda nos últimos anos incrementou esse cenário. Hoje, só na capital paulista, segundo cadastro do Ministério das Cidades, há 150 entidades ligadas à questão habitacional, convertendo a frente por moradia em uma confusa sopa de letrinhas.

 

Para complicar esse cenário, emergiram siglas e bandeiras que se legitimaram ao combinar termos como movimento, luta, moradia e sem-teto para cobrar aluguel de quem precisasse de um pedaço de chão nas ocupações.

“De 2012 para cá, aumentou o número de grupos que não são movimentos organizados, mas criam siglas e bandeiras num oportunismo para ganhar dinheiro, sem compromisso com a melhoria nas condições de vida da população que não tem onde morar”, diz Kohara, um dos fundadores do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Para lideranças dos movimentos de moradia mais antigos de São Paulo, a tarefa de diferenciar siglas autênticas de outras “fake” é simples. 

“Se não tiver trabalho de base, decisão coletiva em assembleias, transparência e prestação de contas, não é movimento, ainda que ele tenha essa palavra no nome”, afirma Evaniza Rodrigues, 49, militante da União dos Movimentos de Moradia (UMM), no qual atua há 30 anos.

Criada em 1997, a UMM é um guarda-chuva de grupos de moradia, assim como a Frente de Luta por Moradia (FLM). 

Várias das organizações que integram esses grandes movimentos rateiam entre as famílias os custos de obras e melhorias deliberados em assembleias. “Não temos nenhuma entidade ou partido ou tio rico nas nossas costas, então rateamos as despesas entre as famílias. Mas aluguel é uma figura jurídica que não existe para nós”, afirma Rodrigues. “Quem cobra aluguel não é movimento, é imobiliária.”

Difere desta prática o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que não faz nenhum tipo de cobrança ou rateio entre as famílias.

Para pesquisadores, a prática de grupos minoritários de cobrança de aluguel aproxima essas ocupações dos antigos cortiços, em que os espaços eram precários e a cobrança, feita de forma coercitiva.

“Muitas pessoas não têm os documentos necessários para passar pelo crivo de uma imobiliária, sem vínculo empregatício ou comprovante de renda, e se submetem a viver em situações precárias. Certas ocupações se tornam opções mais baratas que o aluguel na região central”, afirma Felipe Villela, 32, do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo da USP.

Em 2015, a Folha constatou essa prática em algumas invasões no centro de São Paulo visitadas pela reportagem.

Entre elas, estava a do edifício Wilton Paes de Almeida, que pegou fogo e desabou na terça (1º) —um corpo foi localizado nesta sexta (4), e havia cinco pessoas desaparecidas.

Há três anos, no mural da entrada desse edifício, pendia o aviso: “Senhores moradores, precisamos acertar a contribuição até o dia 25/7/2015. Do contrário, iremos pedir para deixar o espaço”.

O prédio era gerido por duas siglas irmãs: Luta por Moradia Digna (LMD) e Movimento Social de Luta por Moradia (MSLM). Em algumas das divisórias de madeira usadas para delimitar cômodos, lia-se PCC em pichações.

Investigação policial associou outra sigla de ascensão recente, o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), à facção criminosa paulista. Em 2016, a ocupação do grupo no Cine Marrocos foi alvo de operação em que a polícia diz ter encontrado armas e drogas. 


GLOSSÁRIO DA HABITAÇÃO

Déficit habitacional
Número de moradias que precisam ser criadas para solucionar problemas sociais e específicos de habitação. O cálculo inclui famílias que:
- Moram em domicílios rústicos (sem parede de alvenaria ou madeira aparelhada)
- Moram em domicílios improvisados (em situação de rua, obras incompletas, viadutos etc.)
- Vivem com outras famílias em condição forçada
- Têm gastos excessivos com aluguéis
- Moram em domicílios alugados com alta densidade

União dos Movimentos de Moradia (UMM)
Entidade criada em 1987 para articular movimentos de moradia em São Paulo e na região metropolitana. Funciona como guarda-chuva de outras siglas históricas, como o Movimento de Moradia do Centro (MMC), criado no início dos anos 1980, e a Unificação da Luta de Cortiços (ULC), de 1991

Frente de Luta por Moradia (FLM)
Criada em 2004 a partir da aglutinação de outras legendas, como o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), de 2001. Inspirou-se na experiência de mutirões de autogestão e hoje foca suas ações no centro da capital paulista

Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)
Criada em 1997, como experiência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para a ocupação dos chamados “latifúndios urbanos improdutivos” localizados especialmente nas periferias das grandes cidades. Sua principal liderança, Guilherme Boulos, é hoje presidenciável pelo PSOL

Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) e Luta por Moradia Digna (LDM)
Siglas diferentes pertencentes a um mesmo grupo, que ascendeu em 2014 ao ocupar uma série de edifícios públicos no centro da capital. Os líderes Ananias Pereira dos Santos e Hamilton Pereira são investigados pelo Ministério Público por extorsão em ocupações em 2015

Movimento Sem-Teto de São Paulo (MSTS)
Fundado em 2012, anunciava em sua página oferecer “uma completa estrutura, com portaria 24 horas, elevadores, escadas e portarias bem iluminadas”. Ocupou o Cine Marrocos, no centro, até 2016, quando investigação policial apontou o envolvimento de 28 líderes do grupo com a facção PCC e encontrou fuzis e drogas na ocupação

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