Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Destoantes, dez prédios populares resistem no coração do Leblon

Ao lado do metro quadrado mais caro do país, comunidade sobrevive desde 1955

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Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional localizado no Leblon (RJ)
Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional localizado no Leblon (RJ) - Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro

Ao norte, um muro comprido, que contorna três clubes particulares com piscinas e quadras de tênis. Ao sul, um muro alto, que abriga um dos shoppings mais caros do Rio de Janeiro.

Escondidos entre os dois, dez prédios beges e vermelhos com tinta já desgastada que destoam do resto da paisagem. É a Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional com 7.000 moradores já conhecido pelos cariocas, e principalmente pelos moradores do Leblon, desde 1955.

Os prédios estão incrustados no bairro da zona sul que tem o metro quadrado mais salgado do Brasil —R$ 20.678 (maior até que na Cidade Jardim, zona oeste de São Paulo). Eles foram construídos pela Arquidiocese da cidade, por esforços do bispo auxiliar Dom Hélder Câmara.

A intenção era abrigar antigos moradores da favela da Praia do Pinto, que ficava na região. Mas a origem e o perfil da comunidade (majoritariamente negra, jovem e de baixas renda e escolaridade) rendem a ela até hoje um estigma difícil de ser desfeito.

“Já ouvi cliente apontar pela janela e falar: ‘Poxa, um shopping desse com uma comunidade atrás’”, conta Cláudia Santos, 53, que mora na Cruzada e trabalha como fraldarista no shopping Leblon.

Uma parte do descrédito vem ainda do tráfico de drogas que acontece dentro do conjunto pela facção Comando Vermelho, nos blocos que têm os apartamentos mais baratos e mais degradados. Já a ostentação de armas, comum em favelas do Rio, normalmente não existe ali.

“A Cruzada é um símbolo do padrão de segregação das cidades brasileiras: proximidade espacial, mas distância social”, diz o professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles e morador do Leblon. 

“Há uma certa tolerância da presença dessa população, mas desde que fiquem no seu lugar —não só físico, mas simbólico”, afirma o professor. 

Queiroz Ribeiro se refere ao fato de que a maioria das interações entre os dois “mundos” se dá pela prestação de serviços dos moradores da comunidade em cafés, mercados e lojas do bairro caro.

Antes moradora do Leblon, Deise Soletti, 55, hoje é um desses funcionários da comunidade que trabalham na região, como recepcionista de um restaurante. Fez um caminho que poucos de seus ex-vizinhos fariam.

Há seis anos, trocou um apartamento próprio de 120 m² em uma rua paralela por um de 30 m² na Cruzada, num prédio de sete andares e sem elevador. “Fiquei desempregada, com duas filhas em escola particular. Foi aí que decidi procurar um lugar onde, no futuro, eu pudesse me manter só com a aposentadoria”, afirma.

Ela sentia o preconceito de alguns vizinhos do Leblon: “A Cruzada sempre incomodou uma boa parte das pessoas, elas acham que atrapalha. É como se fosse uma cidade isolada, alvo de muitas críticas e poucos elogios.”

Na época, Deise gastou cerca de R$ 170 mil no imóvel, o que compraria cerca de 8 m² no resto do Leblon atualmente, além de R$ 100 mensais para o pagamento do condomínio.

Isso porque ela não chegou a pegar o boom de valorização que a comunidade sofreu logo depois, com a expectativa de uma estação de metrô que acabou vindo só em 2016. Em setembro de 2013, a Caixa avaliou o imóvel em R$ 400 mil.

Única praça abandonada

Além da escalada de preços, que fez muitos moradores venderem seus imóveis, o metrô trouxe um problema à Cruzada que sinaliza a sua separação simbólica do resto do bairro. A praça ao lado da comunidade, que serviu de canteiro para as obras, foi a única que ficou abandonada.

“Essa praça era muito linda, nosso lazer era aqui. Mas acabou tudo. As outras praças do Leblon estão todas arrumadas, até a dos cachorros, mas a nossa não”, aponta o aposentado Luiz Carlos Guimarães, 57, conhecido como Nem.

A prefeitura do município disse que já começou um processo de revitalização do espaço junto ao estado e à iniciativa privada, com poda, retirada de tapumes e limpeza, mas ainda não há prazos. “Está em fase de planejamento e projeto”, diz Marcelo Maywald, superintendente municipal da zona sul.

Já o governo do estado informou que a responsável pela reurbanização da praça Grécia é a concessionária das obras do metrô, o consórcio Rio Barra, que não cumpriu o contrato. A construtora Queiroz Galvão, líder do grupo, não quis comentar as críticas dos moradores da comunidade.

Também está prevista uma reforma do conjunto habitacional pelo Flamengo, em troca da permissão para a construção de uma arena pelo clube em outro local. Não tem data para acontecer, apesar do anúncio feito em abril pelo governador Luiz Fernando Pezão (MDB) e pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB).

“Deve ter mais de 20 anos que não fazem reforma aqui”, reclama Nem, para quem isso contribui para a falta de autoestima interna e o estigma externo da comunidade. Mas ele diz que está melhor. “Antigamente se você falasse que era da Cruzada não conseguia emprego. A maioria dava o endereço errado, tinha um nome muito pesado.”

Isso se amenizou, diz ele, por causa das “crias” da comunidade que ficaram famosas pelo futebol ou pelo basquete, incluindo o ex-volante e meia Adílio, que jogou por vários anos no Flamengo.

Para Fred Le Blue, que morou na Cruzada em 2012 e hoje faz sua pesquisa de doutorado sobre o tema pela UFRJ, a música seria outra maneira de resgatar a identidade coletiva da Cruzada e mudar os estereótipos colados a ela.

No projeto Palavras Cruzadas, ele gravou um disco e fez um jogo de palavras cruzadas sobre a história do condomínio com moradores crianças, adultos e idosos, tentando conservar personalidades esportivas, artísticas e políticas locais que mais se destacaram.

"Foi um meio que encontrei para tentar mudar essa realidade sem ter que mexer na arquitetura e em questões mais difíceis. A estrutura é muito profunda e complexa”, diz.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que informava o texto, os moradores da Cruzada não saíram da favela da Praia do Pinto em 1955 por causa de um incêndio. Ele ocorreu anos depois, em 1969.

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