Associada ao açaí, doença de Chagas avança e dobra em sete anos no país

Pará concentra metade dos registros; transmissão oral, por alimentos, predomina

Homem em palmeira de açaí, coletando o fruto no meio da mata

Ribeirinho coleta açaí na casa parentes, onde seis pessoas tiveram doença de Chagas, no município de Abaetetuba (PA) Avener Prado/Folhapress

Marina Estarque Avener Prado
Belém , Abaetetuba e Igarapé-Miri

Após contrair a doença de Chagas, Maria das Graças passou a ter dificuldades para respirar e se alimentar, mas o que mais a machucou foi a reação da amiga ao saber da enfermidade: “Ela me empurrou longe, agora só fala comigo do outro lado da rua”.

Ex-diarista, Maria das Graças Oliveira, 60, conta seu caso em uma das salas da vigilância epidemiológica de Abaetetuba (PA) —uma casa simples, com pintura desgastada e esgoto a céu aberto. “Falei para ela que a doença não era pegativa, mas não adiantou. Dói muito ser rejeitada”, diz.

O preconceito e o desconhecimento em relação à doença são comuns, mesmo em áreas endêmicas. Abaetetuba, a cerca de duas horas de carro de Belém, é um dos municípios mais afetados pela doença no Pará —estado que concentrou mais da metade dos registros de Chagas no país em 2018.

Os casos da doença na forma aguda, a única de notificação obrigatória, mais do que dobraram de 2010 a 2017, passando de 136 para 356 no país.

Segundo o Ministério da Saúde, a média anual era de 200 casos, número que tem sido superado desde 2015.

De 30% a 40% dos pacientes desenvolvem a forma crônica da doença, com complicações cardíacas e digestivas.

Não há números precisos de doentes crônicos, mas a pasta estima que haja de 1,9 milhão a 4,6 milhões de brasileiros nessa condição, como Maria das Graças.

Maria das Graças Oliveira, 60, sofreu com preconceito e a rejeição de amiga após o diagnóstico de doença de Chagas - Avener Prado/Folhapress

Ela contraiu a doença há seis anos e fez o tratamento na fase aguda, quando as chances de cura são altas, de cerca de 80% —o medicamento, o benznidazol, é dado pelo SUS.

Quatro anos depois, a ex-diarista começou a ter falta de ar de noite. O marido tinha que apertar a sua barriga para ela conseguir respirar.

“Fiz quatro alargamentos do esôfago, porque estava quase fechado”, diz ela. O marido, também com Chagas, desenvolveu arritmias e problemas no fígado. Os dois pararam de trabalhar e hoje são sustentados pelos filhos. “Esse bicho acaba com o nosso corpo.”

“O bicho” a que Maria se refere é o parasita Trypanosoma cruzi, presente nas fezes do barbeiro, e causador da doença. A transmissão clássica, a vetorial, ocorre pela picada do inseto. A partir dos anos de 1970, o controle do vetor reduziu esse tipo de transmissão no país. Atualmente, predomina a via oral, em que a infecção ocorre por meio de alimentos contaminados com as fezes do barbeiro ou com partes do inseto triturado.

Ainda que a transmissão possa ocorrer por outros alimentos, como a cana-de-açúcar, no Pará a doença está muito associada ao açaí. Na época da safra, no segundo semestre, os casos aumentam. Até agosto de 2018, foram 231, embora a safra esteja só no início.

“Antes tinha um período para os surtos acontecerem, agora é o ano todo. E está muito subnotificado, é só a ponta do iceberg”, diz a cardiologista Dilma Souza, coordenadora do programa de Chagas do Hospital Universitário João de Barros Barreto, referência para a doença.

Ainda não se sabe o motivo do aumento. “Precisamos fortalecer estudos epidemiológicos já iniciados para entender o que tem ocorrido”, diz a infectologista Ana Yecê Pinto, coordenadora do setor de atendimento médico do Instituto Evandro Chagas, outra referência no estado para a doença.

Mas há algumas hipóteses, como a expansão do consumo do açaí ou a melhora do diagnóstico da doença no Pará.

A bióloga e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Juliana de Meis, diz que o treinamento de profissionais pode ter contribuído para o aumento dos registros.

Desde 2003, o governo do estado faz capacitações para microscopistas sobre diagnóstico laboratorial de Chagas. “Mesmo assim, é um sinal de alerta, porque sugere uma infecção silenciosa”, diz Meis.

Para o diretor de endemias do Pará, Bernardo Cardoso, o aumento se deve ao uso das batedeiras. “Quando se amassava na mão, as pessoas jogavam água quente para amolecer e isso higienizava o açaí. Agora vai direto na máquina.”

A diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP, Ester Sabino, afirma, no entanto, que não há um risco de epidemia nacional, porque o consumo do açaí fresco é restrito ao Norte. “Os números nunca vão ser tão altos quanto foram na forma vetorial clássica.”

Ainda assim, a transmissão oral preocupa, por causar mais óbitos (cerca de 5%).

Subnotificação

Um dos desafios é evitar a subnotificação. Há um desconhecimento de médicos sobre Chagas, mesmo em áreas endêmicas, e muitos pacientes não apresentam sintomas, nem mesmo na fase aguda. No Pará, cerca de 25% são assintomáticos.

“Quando existem, os sintomas, como a febre, podem parecer virose, malária ou dengue. Muitas vezes o exame laboratorial nem é pedido”, diz a especialista em doenças negligenciadas, Vitória Ramos, do Médicos Sem Fronteiras.

A mãe de Miguel Ferreira, 83, morreu sem o diagnóstico. Em 1998, oito pessoas da sua família ficaram doentes, em um dos primeiros surtos de Chagas registrados em Abaetetuba. Nos casos de transmissão oral, é comum que vários familiares fiquem doentes de uma só vez, pelo consumo do mesmo alimento.

O diagnóstico só chegou 20 dias depois, quando a mãe já havia morrido. Miguel estava internado e não pôde ir ao enterro. “Eu queria ir, mas o médico não me liberou”, diz ele, dono de uma loja de ferragens. Na época, Miguel e a esposa foram tratados, mas desenvolveram o tipo crônico.

Ele teve um AVC e colocou quatro pontes de safena e uma mamária. A esposa precisou de um marca-passo. Miguel reclama do cansaço, que atrapalha o trabalho: “Durmo o tempo todo”.

Miguel Ferreira, 83, e sua esposa, Agustínia Ferreira, 76, sofrem de cansaço e problemas cardíacos pela doença de Chagas crônica - Avener Prado/Folhapress

Para se tratar, o casal vai até Belém, porque não há um cardiologista especializado em Chagas no município, situação comum no estado. Em Igarapé-Miri, um município próximo também muito afetado pela doença, a família de Radija Pena, 15, passa pelo mesmo problema.

Ela e três parentes contraíram Chagas, mas resistem em associar a doença ao açaí, principal renda da família de ribeirinhos extrativistas. A mãe, Risolar Souza, 35, e a irmã, Valquíria, 13, ficaram mais de dez dias internadas, quatro na UTI.

Radija teve dores no peito e arritmia por dois anos. “Não podia nem nadar no rio. O professor de educação física achava que eu era fresca”, conta ela, que hoje está bem.

A mãe e o pai, entretanto, desenvolveram a forma crônica e não conseguem mais trabalhar na extração do açaí. Precisam pagar duas pessoas na época da safra, quando ganham cerca de R$ 5 mil no total —renda que sustenta a família o ano inteiro.

“Não posso nem lavar roupa mais ou espanar a casa que sinto falta de ar, preciso parar e descansar”, explica Risolar. A casa da extrativista, de cimento aparente, fica na beira do rio, cercada pelo açaizal.

Para pagar os custos com saúde, a família tem dependido da ajuda de parentes. Eles gastam R$ 600 para ir a Belém fazer o acompanhamento.

Há um programa de transporte de pacientes, mas o estado e municípios dizem que faltam recursos. “O Pará é enorme, com áreas de difícil acesso e não é tão rico para pagar tudo isso”, diz Cardoso, diretor de endemias do estado.

O Ministério da Saúde afirma que os repasses de Tratamento fora de domicílio (TFD) para o estado foram de R$ 82,2 milhões desde 2016. A pasta diz que o número de médicos no Pará cresceu 36% em sete anos.

Pacientes aguardam atendimento no Instituto Evandro Chagas, centro de referência para doença de Chagas no Pará - Avener Prado/Folhapress

Higiene do açaí

A principal forma de evitar a expansão da doença, segundo especialistas, é melhorar as práticas de higiene do açaí.

Um estudo dos pesquisadores Renata Ferreira e Otacílio Moreira, da Fiocruz, publicado em fevereiro, identificou a presença do DNA do parasita em 10% das amostras de açaí coletadas em feiras e supermercados no Rio e Belém.

Isso não significa que o parasita estava vivo e causaria a doença, mas sim que entrou em contato com a fruta e houve uma falha de higiene. “É um alerta. Não é para não consumir açaí, ao contrário, eu mesmo tomo, é para ter segurança alimentar”, diz.

Há uma preocupação em não se criminalizar a fruta, importante para a economia do estado e parte da alimentação diária do paraense. “Por que acontece mais com o açaí? Porque 100% da população daqui consome, é como água para nós e uma fonte maravilhosa de nutrientes”, diz Yecê, do Evandro Chagas.

Os especialistas explicam que o barbeiro não tem uma preferência pela palmeira de açaí, o contato do inseto com o fruto ocorre depois, durante o processamento ou armazenamento. “O barbeiro fica nas palmeiras mais frondosas, não no açaí”, afirma a bióloga e especialista em Chagas, Angela Junqueira, da Fiocruz.

Armazenado em cestos abertos, o açaí fermenta, gerando calor, gás carbônico e odores que atraem insetos, como o barbeiro.

De acordo com professor de engenharia de bioprocessos na UFPA, Hervé Rogez, o açaí é pouco ácido, o que permite sobrevivência do parasita. “O açaí é muito hospitaleiro. O Trypanosoma cruzi nunca sobreviveria em um limão, por exemplo”, explica.

Feira do Açaí no Ver-o-Peso, em Belém do Pará. - Avener Prado/Folhapress

Uma forma de eliminar o parasita é o branqueamento, que consiste em mergulhar o fruto em água a 80°C por dez segundos e, em seguida, jogar na água fria para um choque térmico. Em 2012, após um decreto estadual, a prática passou a ser obrigatória para batedores artesanais.

A Prefeitura de Belém, em parceria com o Governo do Pará, criou um selo de qualidade, o Açaí Bom, para vendedores que seguem as regras de higiene. O Programa Estadual de Qualidade do Açaí também promove capacitações para batedores no interior.

Na capital, entretanto, são apenas 140 com selo, dentre 5.000 batedores. No início do mês, a Casa do Açaí, da vigilância sanitária de Belém, fez uma pesquisa com 134 vendedores com o selo e só 21% estavam aptos.

Na época de safra, o desafio da vigilância aumenta: surgem cerca de três mil pontos de venda temporários. Na periferia da cidade, vendedores fazem batedeiras nos fundos de casa e anunciam o produto com uma pequena bandeira vermelha. A Casa do Açaí tem apenas seis funcionários para fiscalizar toda a cidade.

“É o único município que tem equipe exclusiva para o açaí, foi um grande avanço. E o decreto melhorou muito a qualidade da bebida. Hoje muitos pontos já abrem com a estrutura certa”, diz a gerente da Casa do Açaí, Camila Miranda. Para ela, os consumidores também precisam se conscientizar. “Eles sempre buscam o açaí mais barato”.

Iracema Pereira, 62, prepara açaí no puxadinho da sua casa; a batedeira deveria ficar protegida em uma área fechada - Avener Prado/Folhapress

Para obter o selo, vendedores gastam de R$ 10 a R$ 18 mil em adaptações e equipamentos. No caso dos ribeirinhos extrativistas, que consomem o produto em casa, há outras medidas de higiene, mais baratas, que reduzem o risco de contaminação: tampar cestos e batedeiras, lavar o açaí com água fervente, mergulhar em bacia com hipoclorito, telar casas e afastar lâmpadas do local de processamento do fruto.

Algumas dessas práticas já foram incorporadas à rotina de Iracema Pereira, 62. Na sua casa de madeira, no rio Maracapucu, em Abaetetuba, seis pessoas ficaram doentes, mas foram tratadas e estão bem. Após a visita da vigilância municipal, a família passou a lavar a batedeira e o açaí com água quente.

A máquina, entretanto, ainda fica em um puxadinho de madeira nos fundos da casa, totalmente exposta à mata. O telhado de palha e a lâmpada Iracema quer retirar porque “chamam o barbeiro”.

Mas com o pouco dinheiro do açaí e da sua aposentadoria, os avanços são lentos. “Consegui comprar um filtro de água outro dia, e paramos de ter verme”, conta, orgulhosa. “Vamos aos poucos, né, mana?”.

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