Veja como funciona o Mais Médicos e o que foi feito para repor as vagas dos cubanos

Profissionais deixam em aberto cerca de 8.000 postos em 3.000 municípios

Flávia Faria
São Paulo

Na quarta-feira (14), o governo de Cuba anunciou a saída dos médicos cubanos do programa Mais Médicos. A decisão foi tomada em retaliação a exigências feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) para a continuação do programa.

Abaixo, entenda como funciona o Mais Médicos e por que os cubanos são contratados em um regime diferente daquele aplicado aos profissionais brasileiros e de outras nacionalidades.

  

 O que o Ministério da Saúde fez para preencher as vagas que ficarão ociosas?
O ministério lançou um novo edital com 8.517 vagas distribuídas em 2.824 municípios e 34 distritos de saúde indígena. A seleção é restrita para brasileiros e estrangeiros formados no Brasil ou que revalidaram o diploma.​ 

Até o momento, 98% dos postos foram preenchidos. Até esta quinta (30), ainda havia 171 vagas, todas em distritos sanitários indígenas ou municípios de extrema vulnerabilidade social. Os médicos começarão a trabalhar até o dia 14 de dezembro. Até a quinta (29), 1.644 já haviam se apresentado. O novo edital, no entanto, não inclui cerca de 2.000 postos que já estavam vagos antes mesmo da saída de Cuba do programa.

Por que há receio de que as vagas não sejam preenchidas se houve tantos interessados neste edital?
O maior problema não está no número de inscritos, mas nos médicos que efetivamente se apresentam para trabalhar. Em anos anteriores, houve muita desistência. Caso isso aconteça agora, o ministério abrirá um segundo edital. Outro problema é que muitos dos que se inscreveram agora —ao menos 2.844, segundo levantamento de secretários de Saúde— já trabalhavam em programas de saúde da família nos postos municipais, pagos pelas prefeituras. Para integrar o Mais Médicos, eles terão que deixar esses postos de trabalho, que ficarão desassistidos até novos profissionais sejam contratados pela secretarias. 

Os cubanos já foram embora? O que aconteceu com as cidades onde atendiam?
Alguns médicos  já deixaram de atender atender e muitos já voltaram para Cuba. Segundo a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), a previsão é que os cubanos deixem o país até 12 de dezembro.

No geral, até que cheguem novos médicos, os postos que os cubanos ocupavam estão vazios e milhares de pessoas estão sem assistência. Moradores de regiões mais afastadas são os que mais estão sendo afetados, e alguns chegaram a desistir de procurar atendimento médico dada a dificuldade —filas, problemas para conseguir transporte e distância das unidades de saúde onde há médicos.

Por que os brasileiros não queriam ficar nos locais mais afastados, que acabaram ocupados por cubanos?
Há diferentes motivos, que vão da desvalorização da atenção básica na formação universitária dos médicos à baixa atratividade das cidades e unidades de saúde onde estão essas vagas, muitas distantes de grandes centros e com acesso e infraestrutura precária.

Mesmo os que vão não chegam a ficar muito tempo. Levantamento da Folha com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação mostrou que 54% dos brasileiros que integraram o Mais Médicos de 2013 a 2017 deixaram o programa em até um ano e meio. O contrato de trabalho é de três anos.

Muitos dos participantes acabaram de terminar a faculdade e se propõem a passar um ou dois anos trabalhando com atenção básica antes de fazer a residência médica em outras especialidades. Outros aproveitam esse tempo, os baixos custos das cidades menores e a bolsa paga pelo programa ( 11.865,60) para fazer um "pé-de-meia" ou pagar dívidas do financiamento das mensalidades da graduação.

Segundo pesquisa da USP realizada com médicos recém-formados no país, só 22,4% pretendiam atuar em cidades diferentes daquelas em que nasceram ou estudaram. Quanto ao local em que gostariam de trabalhar, 28,3% disseram preferir unidades básicas de saúde e só ​19,4% optariam pelo programa Saúde da Família (nesse item, o questionário permitia mais de uma resposta).

É prejudicial que os médicos fiquem pouco tempo no programa?
Embora seja importante garantir o acesso aos serviços médicos de comunidades historicamente desassistidas e especialistas comemorem os resultados do programa nesse sentido, o ideal é que os profissionais pudessem acompanhar os pacientes por um período grande —ou pelo menos por um período mais longo. Isso ajuda a estabelecer o vínculo entre médico e paciente e garantir a efetividade da política assistencial na atenção básica, que pode ajudar a reduzir internações e complicações de doenças crônicas, por exemplo.

 
Quais os objetivos do programa Mais Médicos?
O Mais Médicos foi criado em outubro de 2013, no governo Dilma Rousseff (PT). O principal eixo é a contratação de médicos para atuar em postos de saúde de municípios e localidades onde faltam profissionais. Além disso, o programa inclui ações de expansão do número de vagas em cursos de graduação, especialização e residência médica e melhoria de infraestrutura da saúde.

Telegramas da embaixada brasileira em Cuba obtidos pela Folha mostraram que o Mais Médicos foi proposto por Cuba e já era negociado um ano antes de Dilma apresentá-lo como resposta às ruas em 2013.

Que médicos podem participar? 
Há uma ordem na escolha dos médicos. A prioridade é para aqueles com registro no país. Isso inclui médicos brasileiros formados no Brasil, mas também estrangeiros formados aqui e brasileiros ou estrangeiros formados fora do Brasil que tiveram seus diplomas revalidados pelo governo brasileiro (isso acontece por meio de uma prova, chamada Revalida). 

Se ainda restarem vagas, a oferta é liberada para médicos brasileiros formados no exterior que não tiveram o diploma revalidado. Não sendo preenchidas as vagas, podem ser chamados médicos estrangeiros formados no exterior e sem diploma revalidado no Brasil Por fim, se todas essas categorias não completassem o número de vagas oferecidas, eram chamados os médicos cubanos.

Quanto recebem os médicos do programa?
O valor pago, atualmente, é de R$ 11.865,60 (houve reajuste no início deste ano). Os cubanos, contudo, recebiam cerca de R$ 3.000. O governo brasileiro arcava com o valor total da bolsa, mas o governo de Cuba ficava com a maior parte. Além disso, todos os médicos, inclusive os cubanos, têm alimentação e moradia custeadas pelas prefeituras das cidades onde atendem.

Como era o contrato e o pagamento a Cuba?
Diferentemente do que acontece com os médicos brasileiros e de outras nacionalidades, os cubanos recebiam apenas parte do valor da bolsa paga pelo Mais Médicos. Isso porque, no caso de Cuba, o acordo que permitia a vinda dos profissionais foi firmado com a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde). O Brasil pagava à organização o valor integral do salário, e a Opas, por sua vez, repassava a quantia ao governo cubano. Havana pagava uma parte ao médico (cerca de um quarto), e retém o restante. Isso está previsto no acordo firmado com o governo brasileiro quando o Mais Médicos foi criado. Assim, o governo brasileiro não tinha contratos individuais com cada médico cubano. Eles são funcionários do Ministério da Saúde Pública de Cuba. 

Quais as exigências feitas por Jair Bolsonaro (PSL)?
Segundo publicação do presidente eleito em sua conta no Twitter, a continuidade do acordo foi condicionada à “aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos” e à “liberdade para trazerem suas famílias”.

Parentes de médicos cubanos podem viver no Brasil?
Segundo a Opas, os acordos firmados entre a organização e o governo do Brasil ou o governo de Cuba para o Programa Mais Médicos não possuem qualquer impedimento à vinda de parentes de médicos cubanos ao Brasil. No entanto, a organização diz que não tem acesso aos contratos assinados diretamente entre o governo cubano e seus médicos.

A lei brasileira que instituiu o Mais Médicos —12.871, de outubro de 2013— prevê a concessão de visto temporário "aos dependentes legais do médico intercambista estrangeiro", bem como a possibilidade de custear despesas com o deslocamento desses dependentes. A legislação estabelece ainda que eles têm o direito de exercer atividade remunerada durante a estadia no país, com emissão de carteira de trabalho. 

Ainda que não haja impedimento por parte da Opas ou do Brasil, reportagem da Folha de 2015 revelou que o governo cubano ameaçou profissionais do Mais Médicos com a cassação do diploma e desligamento do programa caso seus familiares (cônjuges e filhos) no Brasil não voltassem imediatamente para a ilha. Segundo as reportagens, o contrato do governo cubano com os médicos previa visitas de parentes, mas não moradia. Como o documento não estipulava prazo para as visitas, teria aberto uma brecha para a permanência de familiares. 

​​​O que disse o governo cubano sobre as exigências de Bolsonaro?
O Ministério da Saúde Pública de Cuba decidiu não mais participar do Mais Médicos. Em nota, afirmou que Bolsonaro “com referências diretas, depreciativas e ameaçando a presença de nossos médicos, disse e reiterou que vai modificar os termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito para a Organização Pan-Americana da Saúde e o que foi acordado por ela com Cuba, ao questionar a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa à revalidação do título e como única forma a contratação individual.” O texto também afirma que “as mudanças anunciadas impõem condições inaceitáveis ​​e descumprem as garantias acordadas desde o início do programa”. 

Quais as regras para revalidação do diploma de medicina no Mais Médicos?
Os profissionais formados no exterior, sejam brasileiros ou estrangeiros, podem atuar por até três anos (tempo de duração do contrato) pelo Mais Médicos sem necessidade de passar pelo Revalida. Isso foi considerado legal pelo Supremo Tribunal Federal. Para que possam renovar o contrato, contudo, é necessária a revalidação do diploma.

Qual o tipo de atuação desses médicos cubanos?
Assim como os demais profissionais do Mais Médicos, eles atuavam na atenção básica, que oferece consultas e assistência primária em postos de saúde.

Onde eles atuavam?
Eles estavam em mais de 2.800 cidades e nos 34 distritos de saúde indígena. Os cubanos eram o último grupo na lista de prioridade para alocação de vagas. Ou seja, ficaram com as vagas que não foram preenchidas por brasileiros e por estrangeiros de outras nacionalidades. Assim, a maioria dos cubanos foi para locais que os outros profissionais não quiseram ir. Isso inclui periferias de cidades grandes e municípios menores e com menos estrutura. 

 

Há restrição de nacionalidade para os médicos estrangeiros?
Sim, mas apenas no caso daqueles que não se formaram no Brasil. Eles não podem ser de países em que a proporção de médicos por mil habitantes seja inferior a 1,8. Essa é a proporção que o Brasil tinha em 2013, quando o Mais Médicos foi criado. Hoje, a média do país é 2,2, mas chega a 1,16 no Norte e a 1,41 no Nordeste. Nos países da OCDE, há 3,4 médicos por mil habitantes, em média.

Há quantos médicos cubanos trabalhando pelo Mais Médicos?
Atualmente, o programa soma 18.240 vagas distribuídas em cerca de 4.000 municípios. Destas, cerca de 8.332 eram ocupadas por médicos cubanos. Eles trabalhavam em 2.885 cidades, sendo que 1.575 municípios só tinham cubanos no programa (80% desses locais têm menos de 20 mil habitantes), segundo a Opas. Eram 301 os médicos de Cuba que atuavam em aldeias indígenas, o que corresponde a 75% do total que atende essa população. Outras 4.5251 vagas são ocupadas por médicos formados no Brasil e 2.842 brasileiros formados no exterior. Também há 451 estrangeiros de outras nacionalidades sem diploma revalidado pelo governo brasileiro. Por fim, há mais de 2.000 vagas ociosas, sem médicos.

 
 

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