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'Quem tem de sentir vergonha é ele, não eu', diz ex-paciente de João de Deus

Empresária paulistana relata caso de abuso sexual na casa do médium em Goiás

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Chicago

Há cinco anos a empresária paulistana de origem libanesa Aline Saleh, 29, guarda um segredo relevado, no sábado (8), na voz de outras mulheres. Ela relata ter sido abusada sexualmente pelo médium João de Deus em 2013, quando esteve com a avó na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia (GO), em busca de cura e espiritualidade.

Saleh contou sua história à Folha sem medo de registrar sua identidade e seu rosto. "Quem tem de sentir vergonha é ele, e não eu." 

A empresária Aline Saleh, 29, que relata abuso sexual do médium João de Deus em Goiás - Alberto Rocha/Folhapress

A assessoria do médium não retornou as ligações da Folha. A seguir, o depoimento de Saleh.

 

Tenho mediunidade desde pequena. Via vultos, tinha sonhos fortes. E vivia à procura de meios para entender melhor esses fenômenos e me desenvolver mais espiritualmente. Eu nunca tinha ouvido falar de João de Deus até 2013, quando minha avó me convidou para acompanhá-la numa visita ao médium em Abadiânia, Goiás.

Ela queria curar as dores de uma contusão que teve no braço direito. Fiquei curiosa e topei. Pra mim, era uma aventura, porque eu já tinha frequentado um centro de umbanda, e tinha algum conhecimento da relação com entidades e médiuns.

Cheguei a Abadiânia e achei espantoso como a cidadezinha toda gira em torno de João de Deus. Há fotos dele em toda parte. As pessoas são doutrinadas, e o lugar é cheio de gringos.

A Casa Dom Inácio de Loyola, onde ele atende, é linda e cercada por natureza. Na porta, um grupo canta e toca violão. O clima é de paz. Parecia ser um lugar que fazia o bem.

Ao chegar, fui conduzida para uma espécie de grande varanda onde começa a doutrina. As pessoas rezam e dizem que você vai se sentir melhor. É assim que, aos poucos, vão comendo a sua mente.

Em fila, entramos na Casa, passando por um corredor de pessoas vestidas de branco, rezando e meditando em silêncio.

Ali existe uma vibe boa mesmo porque todo mundo está em busca das mesmas coisas: uma cura, uma esperança, uma palavra. Então todos entram na mesma sintonia.

Ao final desse corredor de boas vibrações, numa espécie de púlpito, fica João de Deus, numa cadeira, supostamente incorporado por uma entidade.

Minha avó foi antes de mim. Falou de seu braço. Ele nem olhou na cara dela. Rabiscou uma receita de passiflora, vendida numa casinha ao lado, e disse que ela ficaria boa.

Na minha vez, perguntou o que eu buscava ali. Expliquei que sofria com a minha mediunindade, que me fazia tão bem quanto mal porque não sabia controlá-la. A entidade pediu que eu procurasse o "médium João" ao final da sessão.

João de Deus atende numa salinha no meio da Casa. Quando cheguei, havia outras três mulheres na espera. E, do outro lado da porta, o médium berrava: "Eu estou cansado! Não vou mais atender ninguém! Manda todo mundo embora!".

Seu assistente veio até nós, claramente constrangido, e se desculpou, dizendo que o atendimento seria adiado. Achei aquilo estranho.

De noite, tive um sonho horrível. João de Deus aparecia de preto, do lado da minha cama, e sugava toda a minha energia, com as mãos sob meu rosto. Eu conseguia sentir os fluidos saindo do meu corpo, mas não conseguia me mexer.

Acordei com um grito. E caí num choro descontrolado. Minha avó se assustou. Do alto dos meus 24 anos, pedi para dormir na cama dela —coisa que nunca tinha feito.

Na manhã seguinte, voltamos à Casa. No encontro com João de Deus, fui logo falando do meu sonho. Ele disse que era normal e que ele estava me passando energia, e não tirando ela de mim. E começou a me falar que eu era muito especial.

Pediu que me sentasse na cadeira dele, no púlpito, até sua chegada à sessão, de olhos fechados. Disse para eu "comandar a energia do espaço".

Pela expressão de sua ajudante, ela achou aquilo tão esquisito quanto eu, mas me conduziu ao púlpito que nem um robô. Várias pessoas do corredor me olharam abismadas. Fechei os olhos e mantrei [meditei mantras].

Estava com a autoestima baixa e ele havia me colocado lá em cima, criando na minha cabeça essa ideia de que eu era especial e poderia ajudar as pessoas se me desenvolvesse.

Quando começou a sessão, sai da cadeira, e João pediu que eu me sentasse logo ao lado. Ao final, fui para a sala dele, onde havia novamente duas ou três mulheres na espera. De novo, apenas mulheres. Isso me chamou a atenção.

Ele chamou a minha avó e começou a dizer que eu tinha um dom e que poderia trabalhar com ele, fazendo o bem e curando as pessoas. Minha avó ficou toda orgulhosa.

Aí ele disse: "A senhora já almoçou? Não? Então vá, que eu vou ficar aqui conversando um pouquinho mais com a Aline". Um ajudante levou minha avó.

Nessas, eu já estava supertensa. Ouvi-lo gritando no dia anterior me fez pensar: "Epa, um líder espiritual não deveria berrar desse jeito".

O ajudante voltou e falou ao médium que ali estava "aquela moça com o filho".

Entrou uma senhora simples com um menino de mais ou menos 10 anos, que claramente tinha algum problema mental. Ela disse ao "Seu João" que era a terceira vez que ia à Casa, sem observar melhora no filho.

O médium olhou pra mim e disse: "Dá um passe nele". Falei que não sabia. E ele: "Sabe, sim!".

Olhei para aquela mulher como se lhe pedisse desculpas, levantei e dei um passe no menino. Não sabia direito o que estava fazendo. Quando terminei, ele falou para a mãe do garoto: "Pronto, ele já vai melhorar".

Não fiquei confortável com aquela situação. E piorou. Quando a mulher, o filho e o assistente saíram da sala, João passou a chave na porta de vidro jateado. Virou e começou a falar: "Olha, menina, você tem um dom. Você é muito especial. Viu o que acabou de fazer no menino?". E eu, quieta.

"Agora, vou reenergizar os seus chacras. Fica de pé!", mandou. E começou a pegar nas regiões dos sete chacras do corpo [pelve, umbigo, estômago, coração, garganta, testa e topo da cabeça].

Disse que eu estava com muita energia e precisava de um realinhamento. Em seguida, e muito rapidamente, abriu a porta do banheiro da sala e me colocou pra dentro. Pediu que eu virasse de costas, colocasse as mãos nos meus quadris e me mexesse. Disse que era para liberar a energia. Muito esquisito.

E, nisso, você se vê acuada e não sabe o que fazer. Sentia meu corpo todo gelado, dos pés à cabeça. Ele falava "mexe, mexe". E eu dizia: "não quero, não consigo".

João falava o tempo todo que estava "tudo certo", e começou a me encoxar, rebolando. Aí pegou a minha mão e colocou para trás, no pinto dele, flácido, que estava para fora da calça.

Puxei a mão de volta. Ele disse que era "assim mesmo", que era importante e tal.

Tentou, de novo, conduzir minha mão para o seu pênis. Eu reagi. "O que é isso? Isso não está certo!". E me virei. Ele saiu pra sala, fechou a calça, se sentou no sofá. Eu me sentei no segundo sofá da sala, petrificada.

João abriu a porta. Perguntou minha avó já tinha almoçado, e pediu que a trouxessem ali. Quando minha avó apareceu, ele voltou a me elogiar para ela. Comecei a me sentir mal. Pedi licença e saí correndo.

Do lado de fora da casa, desabei num choro que não acabava. Fiquei confusa e liguei pra minha tia em busca de ajuda. "Será que eu estava ficando louca? Será que tinha de ter cedido?".

Ela falou: "Sai daí agora, Aline! Esse cara é louco!".

Para minha tristeza, minha avó desconfiou do meu relato de que João de Deus havia me levado para dentro do banheiro onde tentou, por duas vezes, colocar minha mão no seu pinto. Ela disse que o médium era um homem maravilhoso, que curava as pessoas, e que eu estava confundindo os fatos.

Queria ir embora dali imediatamente. Era insuportável permanecer num lugar onde as fotos de João de Deus estão por toda parte. Consegui remarcar o voo de volta a São Paulo no dia seguinte.

Ainda na pousada, comecei a fazer pesquisas na internet. Não encontrei nenhuma associação de termos como "fraude" ou "abuso sexual" e o nome de João de Deus, a não ser um comentário num blog. Resolvi procurar em inglês "John of God" e encontrei bastante coisa. Fiquei com medo. Achei que ele poderia vir atrás de mim porque eu havia fugido.

Voltei rezando. Ao chegar em casa, deitei na cama da minha mãe e passei três dias chorando em posição fetal, sem conseguir sair de casa. É o tipo de coisa faz a gente pensar a culpa é nossa. Deveria ter gritado? Feito um escândalo?

A terapia me salvou de um trauma maior. Consegui me libertar. Hoje, tenho plena consciência de que ele é uma pessoa doente, que recebe suas vítimas num delivery de esperança de cura e busca da espiritualidade.

Hoje, não tenho vergonha nenhuma do que aconteceu comigo. Quem tem de se envergonhar é ele! Falar sobre isso me parece o melhor jeito de libertar mulheres abusadas da culpa e da vergonha, além de evitar que isso ocorra com outras.

Descobrir casos iguais ao meu fez com que eu me sentisse abraçada. Foi um alívio imenso. E saber eles estão se tornando públicos não me traz sentimento de vingança, mas de Justiça.

OUTRO LADO 

Em nota enviada ao programa da TV Globo "Conversa com Bial", que relevou os casos, a assessoria de imprensa do médium afirmou o seguinte: "Há 44 anos, João de Deus atende milhares de pessoas em Abadiânia, praticando o bem por meio de tratamentos espirituais. Apesar de não ter sido informado dos detalhes da reportagem, ele rechaça veementemente qualquer prática imprópria em seus atendimentos".

Ao jornal O Globo, a assessoria disse que as acusações são "falsas e fantasiosas" e questiona o motivo pelo qual as vítimas não procuraram as autoridades. Ainda afirma que a situação é "lamentável, uma vez que o Médium João é uma pessoa de índole ilibada".

Folha tentou contato com a assessoria do médium, mas até o momento não recebeu resposta.

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