Motoristas de aplicativo vetam cão-guia em carro

Condutor cancela corrida de advogada e pede para ela sair do veículo; 30 casos foram registrados em SP desde 2018

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São Paulo

Conseguir criar uma lei para ter o direito básico de ir e vir pela cidade não facilitou a vida da advogada Thays Martinez, 45, cega desde os quatro anos.

Em 2000, ela foi impedida de entrar com Boris, o seu cão-guia na época, na estação Marechal Deodoro, na linha 3-vermelha do Metrô. A companhia alegava que cachorros não poderiam embarcar nos vagões.

A advogada levou o caso à Justiça. Um ano depois, uma lei estadual foi criada para permitir o acesso de cães-guia a qualquer lugar no estado. 

Quatro anos depois, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que assegurou à pessoa com deficiência visual o direito de “ingressar e permanecer com o animal em todos os meios de transporte no país”.

Mesmo assim o problema reapareceu. Recorrente, desta vez é com a Uber. Alguns motoristas têm se negado a transportar a advogada com seu atual cão-guia, Sophie. 

O último transtorno com carros da empresa ocorreu na noite de quarta-feira (17), quando ela se preparava para deixar a casa de uma amiga, na zona norte. No local marcado, o primeiro motorista que atendeu Thays foi curto e grosso: “eu não levo cachorro”.

Pivô de lei que permitiu cães-guias, Thays Martinez voltou a sofrer recusa
Pivô de lei que permitiu cães-guias, Thays Martinez voltou a sofrer recusa - Bruno Santos/Folhapress

Ela diz ter explicado que a labradora não era um animal qualquer, mas um cão-guia. “Dei o número da lei, ele se negou a pesquisar e disse para eu reclamar na Uber porque eu estava atrapalhando ele”.

A advogada teimou em não sair do carro. Naquela altura, Sophie estava do lado de fora do veículo esperando o comando da tutora para entrar e ficar deitada sobre o carpete. “Ela foi treinada para nunca deitar no banco onde nós, humanos, sentamos”, disse.

O motorista da Uber cancelou a corrida, e ela chamou a Polícia Militar. A chegada de um soldado da 2ª Companhia do 43º Batalhão da PM só piorou a situação.

O PM, diz a advogada, não sabia da existência da lei sobre cães-guia. Na pesquisa que fez na internet, viu que a lei era de 2005 e insinuou que a advogada estava errada. “No ano em que a lei foi sancionada não existia Uber. Então, a senhora não pode reivindicar esse direito”, lembrou Martinez.

“Fui ficando nervosa e muito estressada porque o policial não conhecia nada de legislação. Ele precisava ter esse preparo porque não sou a única pessoa que está passando por esse tipo de constrangimento”, disse.

E o PM seguiu sua fala, diz a advogada. “A senhora não vai ter nenhum prejuízo financeiro porque a sua corrida foi cancelada. Então, não vai ter nada.”

Vencida pelo cansaço, Martinez saiu do carro meia hora depois e sem outra opção, acionou um segundo motorista da Uber. Ele levou Sophie para casa com tranquilidade.

Agora, ela diz que vai encaminhar uma denúncia sobre a recusa do motorista da Uber ao Ministério Público.

A promotora Deborah Kelly Affonso, da área de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, disse que abriu um inquérito em maio para investigar casos como o de Thays.

“O que a gente tinha até então era um caso isolado, mas as denúncias aumentaram muito nos últimos meses.”

O Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência informou que recebeu 30 denúncias do tipo entre 2018 e abril deste ano. “Tem sido assim: o motorista aparece e quando vê que o passageiro é cego e está com o cão-guia acaba indo embora. Quando aceitam a corrida, acrescentam uma taxa indevida de limpeza porque alegam que os cães soltam muitos pelos”, diz a promotora.

A Uber informou, por meio de nota, que os seus motoristas precisam cumprir a lei e acomodar os cães-guia nos veículos. “Se comprovada a recusa, o motorista parceiro envolvido poderá perder permanentemente o acesso à plataforma”, disse a empresa.

Já a Secretaria de Segurança Pública, sob a gestão de João Doria (PSDB), informou que a conduta do PM será apurada. Em nota, a pasta diz que “todos os PMs passam por aulas específicas na Academia de Polícia, com abordagem diferenciada de Atendimento Público e Direitos Humanos, para prestar o melhor atendimento às vítimas”.

Para Thays, o Brasil é um dos países mais avançados em termos de legislação para pessoas com deficiência. “Mas é uma legislação quase simbólica porque nada é ensinado nas escolas, por exemplo”, disse.

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