Investigação do TCU aponta sobrepreço em remédio para câncer e leva a desabastecimento

Compras de medicamento produzido pela suíça Roche são investigadas

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Diego Junqueira
São Paulo | Repórter Brasil

A enfermeira aposentada Joyce Guimarães convive com um câncer de mama há seis anos. Quando passou a se tratar com um remédio que obtém de graça no SUS, sua disposição melhorou. A ampola, porém, sumiu das prateleiras entre novembro de 2018 e março deste ano —foi quando Guimarães descobriu que, para manter o tratamento, teria que pagar R$ 12 mil por frasco. 

“Por que é tão caro?”, questiona ela, que recebe aposentadoria de R$ 1.300. 

Guimarães não sabe que passou quatro meses sem o herceptin, fabricado pela multinacional suíça Roche, devido a uma parceria firmada pela fabricante com o Ministério da Saúde e o laboratório público paranaense Tecpar. 

Após o período, o fornecimento foi normalizado.

O desabastecimento começou após o Tribunal de Contas da União (TCU) paralisar o acordo por suspeita de sobrepreço na venda ao governo federal, com prejuízo estimado de R$ 61 milhões ao erário.

Mulher faz exame para rastreamento de câncer de mama em hospital da Bahia
Mulher faz exame para rastreamento de câncer de mama em hospital da Bahia - Gustavo Urpia/Secom/Divulgação

A multinacional suíça também é alvo de ação na Justiça Federal, movida em 2016 pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal, que a acusa de causar danos de R$ 107 milhões a 11 estados brasileiros. 

Nos dois casos, as suspeitas envolvem o sobrepreço do remédio e indicam estratégias do setor farmacêutico para ampliar o lucro nas negociações com o poder público. 

O governo federal e os estados são os maiores compradores brasileiros do herceptin, cujo princípio ativo é o trastuzumabe, referência contra um dos tipos mais graves de câncer de mama e oferecido de graça no SUS desde 2013.

No Brasil, a Roche teve monopólio sobre o medicamento até 2017, quando entrou no mercado uma versão concorrente. A expectativa era que o herceptin ficasse mais barato, mas isso não aconteceu. 

Com monopólio ameaçado, a Roche fechou parceria com o governo federal para produzir o remédio no país com o Tecpar e a Axis, um laboratório privado fluminense. Enquanto durasse a transferência de tecnologia, a Roche teria garantidas ao menos 40% das compras do SUS. 

O acordo aconteceu no âmbito das PDPs (Parceria para o Desenvolvimento Produtivo), política criada em 2009, sob o governo Lula, que prevê transferência de tecnologia de empresas privadas a laboratórios públicos para capacitar a indústria brasileira, aumentar a produção nacional de remédios avançados e diminuir seus preços. 

Mas a parceria entre a Roche e o Tecpar, em vez de baratear o medicamento, fez com que o ministério desembolsasse 37% a mais do que pagava anteriormente (R$ 1.293 ante R$ 939 por ampola). A compra levantou suspeitas do TCU, que interveio e paralisou os pagamentos, exigindo explicações do Tecpar e do ministério sobre o porquê de se pagar mais caro pela ampola. 

O TCU investiga também o Ministério da Saúde por ter firmado a parceria sem cumprir o marco legal das PDPs, que prevê análise de cada acordo por duas comissões da pasta antes da aprovação. 

O acordo entre Tecpar e Roche foi aprovado pelo ex-ministro da Saúde Ricardo Barros (PP-PR) em tempo recorde: uma semana, enquanto a tramitação média é de seis meses. A ex-gestão do ministério previu ainda investimento de R$ 82 milhões para que o Tecpar produzisse a ampola em Maringá (PR), reduto eleitoral do político.

Barros nega que tenha favorecido o Tecpar. “Não houve nenhum privilégio que não tenha sido dado a outros laboratórios públicos”, disse o ex-ministro à Repórter Brasil. 

Ele afirmou que o projeto não passou pelas duas comissões porque era uma parceria em andamento. No entanto, até 2017, Tecpar e Roche não faziam parte das PDPs então vigentes para o produto. 

O então ministro da Saúde, Ricardo Barros, durante cerimônia do governo federal em 2018
O então ministro da Saúde, Ricardo Barros, durante cerimônia do governo federal em 2018 - Pedro Ladeira - 12.mar.18/Folhapress

A Roche se recusou a prestar esclarecimentos sobre o acordo. O Tecpar alega que cobrou mais caro do ministério para investir o ganho extra (R$ 61 milhões) nas três empresas parceiras e nas atividades de transferência de tecnologia. 

Durante a investigação do TCU, o ministério reconheceu que seu estoque se resumia a 15 frascos e que alguns estados já estavam desabastecidos. Após a suspensão da parceria e uma compra emergencial no fim de 2018, o Ministério da Saúde abriu licitação para comprar 435 mil ampolas do trastuzumabe e abastecer o SUS até janeiro de 2020.

Axis e Roche tentaram bloquear a licitação para impedir a entrada da fabricante da versão genérica, a Libbs, na disputa pública. Mas o pedido não foi aceito pelo ministério. Adiado em duas semanas, o pregão foi concluído com um valor mais barato pela ampola (R$ 894). 

Após a publicação desta reportagem, a Roche informou à Repórter Brasil que não pratica sobrepreço com o herceptin, que manteve o valor do produto ao fornecê-lo ao Tecpar e que não é responsável pelo desabastecimento no SUS.

As suspeitas envolvendo a PDP e os questionamentos feitos pela Roche ao pregão prejudicaram o abastecimento do SUS em pelo menos sete estados, segundo levantamento da Femama (federação de apoio à saúde da mama).

“São várias desculpas que ouvimos, mas quem sofre é o paciente”, lamenta Guimarães, que afirma que seu quadro de saúde piorou sem o remédio.

Mais de 9.000 brasileiras usam o trastuzumabe no SUS, segundo o Ministério da Saúde. Questionados pela reportagem, a pasta, Roche e Tecpar não comentaram o desabastecimento temporário. 

A Roche é acusada pelo MPF-DF de causar prejuízos de R$ 107 milhões para 11 estados ao cobrar pelo produto, entre 2012 e 2015, até o triplo do que cobrava do Ministério da Saúde, segundo levantamento realizado pelo grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da USP.

Diferentemente do ministério, que compra da Roche em larga escala, as secretarias estaduais compravam o medicamento após determinação judicial. Segundo Carlos Portugal Gouvêa, professor de direito comercial da USP, é comum no mercado farmacêutico cobrar-se mais quando há ordem judicial.
A ação de abuso de preço é inédita no Brasil e pode mudar a regulação desse mercado. 

Na apelação apresentada à Justiça Federal, após decisão favorável à Roche na 1ª instância, a procuradora Anna Carolina Garcia afirmou que a multinacional prejudica o SUS “ao estabelecer uma deliberada diferenciação de preços, sem justificativas razoáveis”, acarretando prejuízo. 

A Roche não reconhece o abuso de preço em nenhum dos casos citados pela reportagem e afirma que a precificação no Brasil “é pública e definida” pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), vinculada ao Ministério da Saúde. 

O preço máximo adotado pelo órgão, no entanto, é questionado por especialistas por se basear em valores cobrados em países de alta renda. O ministro Aroldo Cedraz, do TCU, afirma que os preços da CMED “não são o parâmetro mais adequado” para compras públicas.

O agravante é que a lei não autoriza a CMED reduzir o preço máximo dos remédios, nem mesmo quando seu valor de mercado está em queda, como no caso do trastuzumabe.

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