Não existem mais jagunços, polícia não entra para matar, diz comandante da PM de SP

Marcelo Vieira Salles critica discurso político linha-dura e diz que policial sofre consequência

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São Paulo

"Não há mais jagunços". É assim que o comandante da Polícia Militar de São Paulo, Marcelo Vieira Salles, 52, resume sua crítica à política de incentivo à violência policial como forma de combate à criminalidade.

Em recado à própria tropa, diz que o policial precisa resistir a esse discurso porque, no final, as consequências recairão sobre ele. "Será ele quem vai responder diante ao júri."

Esse tipo de posicionamento quase custou a Salles o comando da PM. Na campanha eleitoral de 2018, ele criticou a declaração do ex-prefeito e hoje governador João Doria (PSDB) de que, na gestão dele, a polícia atiraria para matar

Marcelo Vieira Salles fotografado enquanto fala na entrevista. Olha para o lado esquerdo, para seu interlocutor, que não aparece na foto. Tem os dois dedos indicadores pressionados contra a testa. Usa farda da polícia militar de São Paulo, na cor azul claro. Está sentado em um sofá de couro preto.
O comandante da Polícia Militar de São Paulo, Marcelo Vieira Salles, concede entrevista à Folha em seu gabinete - Gabriel Cabral/Folhapress

Caso raro na PM, Salles resistiu à troca de governo e de secretário de Segurança Pública. Desde que assumiu o cargo, ainda na gestão Márcio França (PSB), em 2018, assiste à queda de homicídios intencionais, roubos e furtos de veículos e roubo de carga.

Qual dos índices de violência de 2019 o senhor considera mais positivos? O maior patrimônio que temos é a vida. Sem dúvida, a diminuição dos homicídios. E a redução dos crimes patrimoniais. Quando você evita que seja subtraído um bem da pessoa, aquele veículo que ela custou a comprar, ou você devolve, é uma satisfação muito grande.

Houve queda da maioria dos índices de violência, mas aumentou da letalidade policial. Por quê? Há preocupação do comando quanto a isso? Há uma grande preocupação da instituição em todas as situações em que há o evento morte, seja por parte do infrator, seja ele por parte dos policiais ou na morte de policiais no atendimento de ocorrências.

O desejável é que não morra ninguém. Mas sempre digo: a opção do confronto é do infrator. A pessoa quando sai de casa armada com um revólver, uma pistola ou às vezes um fuzil não está com as melhores intenções. Quando a polícia vai prendê-la e ela reage, o policial tem que se defender e defender a população.

Por vezes, a repercussão disso é a morte. A guerra contra o crime por vezes tem efeitos que não gostaríamos de produzir. Nem o nome guerra é bonito. Mas temos que defender [a população], cumprir a nossa missão constitucional.

Há incentivo à violência policial, inclusive de agentes públicos. Esse tipo de discurso interfere no trabalho do policial na rua? Há todo um cuidado do comando da Polícia Militar, da instituição, para combater esse tipo de incentivo. A Polícia Militar é legalista. Nós não podemos, sob hipótese alguma, sob argumento nenhum, descumprir a lei.

Eu não gosto desse tipo de discurso. É um discurso fácil, é um discurso que tem eco na nossa sociedade. Talvez um dos motivos seja a sensação da impunidade. A sociedade, por conta a impunidade, quer uma resposta rápida e, às vezes, o Estado não dá.

Às vezes o cidadão fala, como já falaram para mim uma vez: "vocês matam muito pouco, tinham que matar mais". Isso foi em 2017. Estávamos numa pizzaria, quem disse foi um senhor que estava na mesa, amigo de um amigo nosso. E minha mulher até me cutucou, viu que eu não gostei. Respondi a ele que as coisas não são assim. E ele repetiu. "Não, vocês matam muito pouco, tinham que matar mais".

Aí, perguntei: "Como o senhor acha que nós deveríamos matar? Afogado? Estrangulado?". Isso depõe contra a instituição. Não existem mais os jagunços. Somos uma instituição técnica, profissional.

Nosso policial não entra para isso. Ele entra para ganhar o pão dele, sustentar a família. Mas é uma função técnica.

Temos que tomar cuidado, porque quem vai sentar no banco dos réus é o soldado da radiopatrulha. Esse é quem vai responder perante ao júri.

Na época de Paraisópolis [quando nove pessoas morreram pisoteadas durante intervenção policial em um baile funk em dezembro], o senhor disse algo sobre "Não espere reconhecimento daqueles que não conhecem o cheiro da pólvora". O que quis dizer? Essa expressão usei na formatura de soldados da Polícia Militar. Nós vínhamos sobre uma bateria muito pesada de críticas. Críticas muito duras e injustas, em alguma medida, do trabalho da polícia.

Às vezes você nota que alguns comentaristas, não tem a melhor informação, mas começam a opinar. Gente, nós estamos falando de uma instituição que perdeu, em 2019, 36 homens e mulheres trabalhando. Eu notei um desânimo de alguns policiais naquela formatura. O meu papel como comandante é motivar, é impelir, é pedir, é convencer, é falar, é trazer todo mundo junto para um objetivo só. Isso é um dos papeis de qualquer comandante.

Talvez, tenha até exagerado, mas aquilo saiu como uma forma de falar: 'senhores, senhoras, não esperem reconhecimento daqueles que não conhecem o cheiro da pólvora ou o calor dos incêndios."

Os índices de violência estão caindo, mas pesquisas apontam que a sensação de insegurança nas pessoas ainda continua em alta. Isso tem explicação? Primeiro, o brasileiro é meio cético em relação a dados que venham do poder público. Nós temos uma dificuldade, e não é uma crítica à imprensa —por princípio, eu respeito e defendo a possibilidade de ser falado, a liberdade de imprensa é fundamental. Por vezes, ao meu olhar, em algumas situações, injustas, quando você tem uma ocorrência grave e começam ser veiculadas imagens de outras ocorrências que não têm nexo causal com o resultado daquela ocorrência específica.

Para tumultuar? Querem impor uma narrativa que não houve. Na coletiva do caso de Paraisópolis, às 10h do domingo, quando as informações chegaram à imprensa, não havia ainda imagens disponíveis da ocorrência. Começaram a divulgar vídeos de situações de outros locais, de outras datas [um vídeo de abuso gravado semanas antes circulou como se fosse do episódio corrente].

Caso gravíssimo, de abuso policial, mas quem não olhava de maneira atenta, achava que era daquele evento. Na entrevista coletiva fiz questão de falar isso. Cuidado. É isso que, por vezes, questiono, não concordo com esse tipo [de jornalismo]. Porém, temos que respeitar a liberdade de imprensa.

O senhor está dizendo que sensação de insegurança das pessoas se deve a informações equivocadas que a imprensa divulga? São exageradas. Nós temos 5,5 homicídios [por grupo de 100 mil habitantes] na cidade de São Paulo. Aí, você tem um problema grave, e você faz 10, 15, 30, 35 inserções daquele problema grave.

A pessoa fala: 'não vou pra São Paulo, está perigoso. Eu vou pra Chicago.' Chicago tem 20,8 homicídios por 100 mil habitantes [em 2018].

Dizem: "Nos EUA que é bom". Washington, a capital do país mais rico do mundo: 22,8 por 100 mil habitantes. Nós estamos melhor do que Las Vegas, Los Angeles, Washington, Chicago. Eu até entendo. É notícia que vende.

Não estou falando em cerceamento não. Tem que falar. Total liberdade de imprensa.

O que acha de armar a população como forma de combater o crime? É preciso olhar sob alguns aspectos. Pelo aspecto técnico, policial: quanto menos arma, melhor. Agora, você tem que lembrar que a legislação brasileira é nacional. Nós não podemos ter como base a cidade de São Paulo, com 12 milhões de habitantes, com um número imenso de delegacias, uma polícia com 86 mil homens.

Como é que nós falamos lá no Alto Solimões? Será que quando a pessoa precisar, o Estado brasileiro vai estar lá? Será que a polícia, a Polícia Militar, a Polícia Civil, vão estar lá quando ele ligar para o 190? Sabemos de rincões no Brasil que se demoram horas para chegar de barco. Por isso que há pessoas que falam de legislação nacional e tem como base o minimundo que moram, que elas convivem.

Se fosse presidente, o que tentaria mudar na segurança públicaTentaria agilizar uma resposta aos infratores da lei. Tive a oportunidade, em 2001, de frequentar um curso nos EUA. Lá, o processo é sumaríssimo. Então, você tem a prisão, se for ainda no horário de expediente, a instrução dos autos que tem em mãos, de autoria e materialidade, se tiver todos disponíveis ali, o promotor de Justiça já oferece a denúncia.

Tem a instrução criminal, já oferecida a denúncia e já responsabilizado. Nos casos que se tem indícios claros de indício e materialidade. Acho que isso seria um avanço gigantesco. Seria um grande inibidor do crime essa resposta.

Que leis precisariam mudar? Às vezes a lei entra em vigor, tem sua repercussão e ninguém fala sobre ela. A lei antidrogas é de 2006. Os legisladores da ocasião entenderam que o porte de entorpecente não seria crime, entendo que é um problema de saúde pública. Perfeito. Mas, o que se colocou no lugar? Você tinha o controle policial, o controle da Justiça quando era criminalizado... Não discuto a intenção, mas eu peço uma reflexão dos resultados da lei antidrogas.

A cracolândia, ao seu ver, é fruto dessa mudança legal? É um assunto a ser discutido. Nós não tínhamos esse teatro dantesco. De pessoas errantes. Acho que deve ser feita uma análise, muito detida, de como assistir essas pessoas. É um flagelo.

É contra a liberação das drogas? Pode ter um efeito perverso. Sou contra a descriminalização das drogas. Principalmente, por essa experiência. Qual será o controle disso? Nós temos que ter cuidado para não criar titãs incontroláveis. O pai medonho de todos os crimes é o tráfico de drogas. A mãe é a impunidade.

O que senhor pode falar sobre reajuste salarial [os salários dos policiais de SP estão entre os mais baixos do país]? O policial militar ainda ganha mal. Mas não é de hoje. Então, há necessidade de recomposição salarial, o governo tem plena consciência disso.

Ele [o governador João Doria, do PSDB] declarou, e vem fazendo os melhores esforços nesse sentido, no que tange melhorar a arrecadação, a parte fiscal. Tenho contato com ele todas as quintas-feiras. Sinto nele o maior interesse, até para poder cumprir a promessa dele, de que irá recompor o salário.

Nós tivemos um aumento de 5%, o governador conhece os números, declarou para todos que foi o possível.

Acredito que o governador, ao final dos quatro anos, colocará o salário do policial militar entre os melhores do país, um vencimento que o policial mereça. O policial precisa, o policial espera e o policial merece.

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