Policiais presos por deserção no CE estavam de licença por gesso, pós-cirúrgico e até por luto

Advogado diz que prisões foram ilegais; governador afirma que determinou punição justa e que não interessa perseguir

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Fortaleza

Quando viu no Diário Oficial cearense, no dia 22 de fevereiro, que figurava na lista de 77 desertores que deveriam ser presos em meio ao motim da PM no estado, o soldado Silva, 28, não acreditou. Ele estava de licença havia mais de um mês por conta de uma cirurgia de apendicite feita de emergência.

Mesmo tomando 11 comprimidos, ele foi até o quartel se apresentar, munido dos laudos médicos. Lá, soube que ficaria preso assim mesmo, no pós-operatório.

O nome dos policiais e de seus familiares foram trocados ao longo da reportagem a pedido deles que têm medo de represálias.

"Disseram que era ordem, não pediram esclarecimento. Eu tremia porque não entendia o que estava acontecendo. Saí de lá com meu filho aos prantos. Eu só dizia: 'estude para outra coisa'", conta a mãe do militar, a gerente de operações Edna Silva, 51.

A história se repete com o soldado Pereira , 27. Ele torceu o tornozelo um dia antes de se apresentar para a viagem do plantão de Carnaval, ao cair da escada, em casa. Saiu do hospital com uma tala de gesso e um atestado médico de 15 dias longe do trabalho. Avisou a situação pelo WhatsApp para o sargento.

Quando viu o próprio nome na lista de desertores, foi de gesso e tudo até o quartel, mas também acabou preso. "Ele estava trabalhando até o dia anterior de manhã. Como estaria na manifestação? Parece que estão desconfiando dele, mas ele só se acidentou", conta a noiva do militar, a enfermeira Mariana, 39.

No presídio, ela diz, "não tinha nem local para fazer cocô, precisava ficar acocorado no chão, mas ele tava com a perna engessada". Sem muletas, o militar ficou uma semana pulando para não apoiar o tornozelo machucado no chão.

Dos 77 nomes na lista dos considerados desertores, alguns se apresentaram e foram liberados, mas 46 militares acabaram detidos desde o primeiro dia do Carnaval, 22 de fevereiro, por não aparecerem para trabalhar em operação especial no interior do estado. Parte deles reclama que a prisão foi injusta.

Oswaldo Cardoso, advogado especialista em direito militar, que defende parte dos policiais detidos, diz que todas as prisões foram ilegais.

“Era para ser apenas uma transgressão disciplinar, não deserção, que prescinde de dolo, ou seja, intenção de não se apresentar”, afirma. “Teve policial preso por ter sido escalado em duas cidades para o plantão, vários de licença, até um que estava de luto pela morte do sogro.”

A Justiça do Ceará só determinou a soltura dos agentes no dia 2 de março, após o acordo entre policiais e o governo do estado encerrar o motim.  

Segundo o juiz Roberto Soares Coutinho, que havia convertido a prisão em flagrante em prisão preventiva, ela se tornou desnecessária com o fim de paralisação, porque teve como fundamento a garantia da ordem pública e a necessidade de manter a hierarquia e a disciplina.

A soltura, no entanto, não significa que os policiais deixarão de responder por possível participação no amotinamento. Os casos serão analisados separadamente, e os PMs podem vir a ser expulsos da corporação ou ser presos novamente.

A mãe do soldado Silva diz que só quer ver o nome do filho fora da lista de desertores. Ele recebeu 30% do salário e precisou devolver a arma e o uniforme.

"Disseram que a qualquer momento ele pode ser preso novamente. Quando o interfone toca, ele pergunta: “mãe, quem é?”. Agora não sai de casa para nada, nem para tomar um açaí", conta.

O filho, diz, entrou para a corporação há dois anos, realizando um sonho de família, já que o avô, o pai, os tios e primos são todos quadros da polícia civil ou militar. Agora tem diagnóstico de depressão. "Ele adora fazer limpeza das armas, mas está decepcionado, de não ter sido ouvido. Ele operou quando nem se falava em greve", afirma Edna.

O soldado Pereira está na PM há sete anos. Também sempre quis ser policial, mas não tinha dinheiro para fazer cursinho preparatório para a prova. Quando conseguiu R$ 50, comprou apostilas e estudou sozinho.

Já o ex-deputado federal Cabo Sabino, considerado líder do motim dos PMs no estado, não foi preso. Ele tinha um mandado de prisão aberto por causa da paralisação, que é considerada ilegal pela Constituição Federal, entendimento reforçado pelo Supremo Tribunal Federal em 2017.

Sabino se entregou à Justiça Militar do Ceará no dia 5 de março, mas foi liberado. O mesmo juiz, Roberto Soares Coutinho, revogou o mandado considerando que, com o fim do motim, a liberdade do ex-parlamentar não oferece risco à ordem pública. O magistrado determinou que o cabo fique seis meses longe de quartéis militares.

“Quem de fato participou do motim, estava de balaclava, furando pneu, não foi preso. Apenas abriram um IPM [inquérito policial militar] e vai ser investigado”, diz Cardoso.

O advogado também critica o envio dos militares para uma penitenciária de segurança máxima ainda não inaugurada no Ceará.

“O lugar era insalubre. Eles ficaram bebendo água da torneira, não tinham onde fazer as necessidades e ainda comiam com as mãos”, conta Cardoso. Com as denúncias dos familiares e defensores sobre as condições do local, os PMs foram transferidos após dois dias para um quartel na capital.

A PM fala em cerca de 200 agentes parados durante os 12 dias de motim, mas só três foram presos por esvaziarem pneus de viaturas. Eles seguem detidos desde 18 de fevereiro, primeiro dia de paralisação.

Outros 230 policiais foram afastados por 120 dias enquanto são investigados —eles tiveram que devolver armas e distintivos e ficarão fora da folha salarial pelo período.

Questionado se houve atropelo nas prisões, o governador Camilo Santana (PT) afirmou à Folha que foi um período de exceção, já que o estado vivia um motim em meio ao Carnaval, que demanda reforço na segurança pública.

"As pessoas que foram presas em flagrante fazendo motim, furando pneu, continuam presas. E todas aquelas que for comprovado que estavam [amotinadas] sofrerão as sanções legais, mas não posso entrar no detalhe do trâmite", disse o governador do Ceará.​ 

"Minha determinação é que todos tenham punição justa de acordo com a gravidade do crime. Não nos interessa perseguir ninguém", afirmou Camilo.

No acordo que acabou com a paralisação, o governo do estado se negou a dar anistia aos policiais. Ficou acertado, entretanto, que nenhum PM será transferido durante seis meses. Havia medo entre os manifestantes que houvesse uma transferência em massa para o interior do estado.

Em nota, o governo do estado afirma que os casos são isolados, não regra, e que dezenas de policiais foram liberados após justificarem as faltas.

As detenções, afirma, estão previstas no Código Penal Militar, em seu artigo 190, e "todos os casos listados são acompanhados pela Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD), órgão autônomo, e primeiro do gênero no Brasil, com o devido direito ao contraditório e acompanhamento de MPE, MPF, OAB e Defensoria Pública".

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